Cumplicidades

Esta entrada será um pouco mais pessoal do que aquilo que é habitual, pese embora a minha garantia de que isto não é um blogue. Correndo o risco de parecer incoerente, esta minha última sessão na Feira do Livro de Lisboa foi palco de um evento que, pela sua insistente recorrência, me levou a partilhar o meu agravo.

Em Fevereiro passado, o meu colega presencial David Machado escreveu uma crónica muito interessante, na qual conseguiu pôr em palavras aquilo que muitos autores certamente terão já pensado numa ou noutra altura das suas carreiras literárias: nomeadamente o «valor das palavras», ou, em termos laicos e um pouco mais prosaicos, «a forma como autores são chulados de forma conivente». Passo a explicar.

Durante a minha sessão, recebi um convite para visitar uma escola cujo nome não será referido, até porque a minha queixa não diz respeito aos responsáveis da escola em questão, mas sim à atitude generalizada com que se lida com autores. Falou-se de datas, de horas, e de como organizar a sessão, e houve inclusive espaço para citar nomes de pessoas famosas para fins de auto-promoção. Até aí, tudo bem, mas então chegou a hora da fatídica pergunta acerca do provimento da escola para um evento desse género, cuja resposta veio inicialmente na forma de um momento de desconfortável silêncio, seguido da afirmação de que «por norma, quando convidamos, não é costume…» e as mais ruidosas reticências que ouvi em toda a minha vida. Expliquei que era esse o meu procedimento, e ficou-se de acertar detalhes numa ocasião posterior, que estou razoavelmente certo que nunca terá lugar.

Confesso que fiquei algo irritado; não com as pessoas em questão, mas por ter tido o desprazer de ver novamente tal atitude mostrar a sua cara feia. Em Portugal, e tal como o David Machado muito bem o disse:

… a actividade principal de um escritor é escrever livros e… depois disso, existem uma série de trabalhos paralelos que complementam e se cruzam com os livros que escrevemos. Em relação a isso, o maior equívoco é o facto de estes trabalhos paralelos serem muitas vezes encarados por toda a gente (autores incluídos) como promoção dos livros publicados e, como tal, não devem ser pagos.

Não será certamente novidade para muita gente, e não tenho pretensões de achar que a minha presença ou o meu contributo numa escola valem mais que os de esta ou daquela figura pública que não cobrou nada para comparecer, mas cada um valoriza o seu trabalho como bem entende, e acontece que eu acho que o meu vale 100€ mais despesas de transporte e alimentação [o português não gosta de falar de rendimentos, razão pela qual muitos autores não sabem o que cobrar, e muitas editoras não sabem recomendar um valor. Que fique aqui registado, então, para quem quiser comparar ou ter noção]. Segundo me foi dado a entender por quem até hoje recusou, há muitos autores que não cobram, assumindo que a promoção da sua obra é pagamento quanto baste, mas a meu ver essa é uma ideia errónea e que apenas garante a continuidade daquilo que não passa de uma forma ligeira de exploração.

Tenho muito gosto em viajar pelo país fora e falar com os alunos e professores, mas as duas (ou mais) horas durante as quais estou a falar e a gesticular – para não falar nas horas de viagem – são horas nas quais não estou a escrever ou a traduzir, e acontece que escrever e traduzir é o meu ganha-pão. E os comboios, portagens e gasolina não se pagam com a «conversão» de um aluno ou outro, ou com o livro da praxe que os responsáveis frequentemente se vêem obrigados a comprar por uma questão de cortesia. Pode haver quem me tome por unhas-de-fome ou picuinhas por isso, mas eu dou valor ao meu tempo, e acho que mais autores deveriam fazer o mesmo, porque enquanto houver quem esteja disposto a «trabalhar de graça», a situação dificilmente mudará, e não há razão nenhuma para que assim o seja.

Os tempos não estão fáceis para ninguém, é certo, e a cultura é sempre das primeiras a sofrer, mas ao longo de oito anos estive já em escolas, câmaras, bibliotecas e feiras suficientes para saber que ninguém fica a passar fome só por causa do cachê de um autor, e que aqueles que se recusam a pagar o fazem apenas porque sabem que encontrarão outro que não cobre nada (salvo raras excepções de escolas que estão mesmo a passar por maus lençóis). Esta realidade torna-se tanto mais escandalosa quando grandes empresas de retalho se recusam até a cobrir as despesas de deslocação de autores que residam a mais de x quilómetros do local de uma feira do livro, e essa mesma feira do livro decorre sem que ninguém se insurja. Sim, aconteceu; e não, não compareci.

Acredito que muitos autores terão as suas próprias razões para não cobrarem, seja por encararem tais iniciativas como um contributo à cultura, por terem escrito um best-seller, por terem asas, ou porque têm familiares, amigos ou caras-metades que aproveitam a ocasião para fazer uma viagem, e quanto a isso não há muito que eu possa dizer. Cada um valoriza o seu tempo e trabalho como bem entender. Mas sei também que há muitos autores que, quer por timidez, ignorância ou por influência das editoras (que naturalmente só têm a ganhar com publicidade gratuita) escolhem não levar nada pelo seu contributo, e isso sim, está profundamente errado. É uma prática contraproducente que se tornou uma convenção, tal como ir passear com a família aos centros comerciais nos fins-de-semana, e não tem razão nenhuma para existir.