Já falta pouco para A Manopla de Karasthan fazer dez anitos, mas a antecipação desse momento foi infelizmente algo estragada pela realidade do mercado livreiro actual, razão pela qual tardei tanto em actualizar o blogue. Em resultado disso (da realidade do mercado livreiro, entenda-se), não será possível comemorar o aniversário da forma originalmente idealizada.
De qualquer forma, a data continuará a ser comemorada, terá é de ser noutro formato. Perdoem-me as palavras algo enigmáticas, mas tanto eu como a minha editora ainda estamos a afinar os detalhes, por isso prefiro deixar-vos a Nota do Autor à laia de explicação mal-asada, juntamente com a promessa de um esclarecimento nos próximos tempos.
“A arte nunca é concluída, apenas abandonada.”
— Leonardo da Vinci
Com a gravidade deste preâmbulo assegurada pela obrigatória citação de alguém mais famoso do que eu, resta-me agora explicar o porquê desta reedição que, mais do que uma mera edição comemorativa, mais do que uma «versão do realizador», é acima de tudo o coçar de uma valente comichão. Uma comichão decenal que apenas se foi agravando com o passar dos anos e que somente agora pude coçar, servindo-me do 10º aniversário d’A Manopla de Karasthan como pretexto.
As Crónicas de Allaryia não são estranhas a alterações e, como qualquer outra obra, foram sujeitas a uma série de correcções e ajustes ao longo das sucessivas edições de cada um dos volumes. Mas a Manopla, essa foi sempre diferente, e não só por ter sido escrita durante o sempre conturbado período entre os dezasseis e vinte anos de idade. Nela havia sempre algo que faltava, um outro pormenor a corrigir, uma qualquer peça que não se entrosava no contexto global da saga. É uma história com princípio, meio e fim, mas sempre pecou por uma certa lassidão do enredo e por aquilo que eu defini como o «efeito de manta de retalhos» numa entrevista uns dez anos atrás. Tudo devido a um facto muito simples: ao contrário dos outros seis volumes, A Manopla de Karasthan não foi originalmente concebida como parte de uma saga. Aliás, em boa verdade nem sequer tinha sido concebida como um livro, razão pela qual só teve direito a um título quando enviei a obra a concurso. Durante os quatro anos da sua elaboração, o documento sem nome que mais tarde viria a ser A Manopla de Karasthan (o próprio título parecia arbitrário, como vários leitores repararam) não teve quaisquer outras ambições além de povoar com uma sucessão de eventos o mundo que eu tinha criado. Tratava-se de uma história cujo fim eu já conhecia mas que não tinha qualquer conclusão à vista, pois a minha intenção era simplesmente ir escrevendo e escrevendo até não ter mais ideias. Depois veio o Prémio Branquinho da Fonseca, a publicação, e o caso mudou de figura.
Que isto não se entenda como um repúdio ou um lavar das mãos. Nunca escondi que, tal como muitos outros autores, havia coisas que hoje escreveria de forma diferente no meu primeiro livro, mas sempre fiz questão de ressalvar o orgulho que sentia por ele, mesmo com todas as suas rugas e imperfeições. Aliás, gostava de ainda ser capaz de reproduzir a energia pura e inocente com que o manuscrito inicial foi elaborado, de arrear essa dinâmica desbridada que quase deixava as páginas a rebentar pelas costuras e que tanta gente contagiou, mas o paradigma tinha já mudado e as coisas seguiram o seu próprio rumo. Assim, contentei-me em ir fazendo umas alterações aqui e ali ao manuscrito à medida que ia escrevendo os restantes livros, com o intuito de aprimorar o ponto de entrada nas Crónicas de Allaryia e dessa forma tornar a saga mais coesa. Não era algo que eu imaginasse que ainda pudesse vir a ver a luz do dia, mas hoje, com a série já terminada e ainda a tempo de assinalar o 10º aniversário da publicação d’A Manopla de Karasthan, achei que era a altura ideal. Seria agora ou postumamente; optei pelo agora.
E o resultado é este: uma reedição retrabalhada e refinada do manuscrito original após um longo processo de arqueologia literária, que também implicou o corte de muita gordura. Não obstante, a palavra de ordem foi conservar o maior número de trechos possível, enxertando-os nas partes do texto mais alteradas de forma a dar-lhes autenticidade e construindo à volta deles os elementos novos que acrescentei ao texto. Tratou-se de uma tarefa morosa que me levou bastantes anos, pois foi curiosamente levada a cabo da mesma forma que o manuscrito original; ou seja, ia sendo feita ao seu próprio ritmo, sem um fim à vista nem um prazo definido. Permitiu-me revisitar os já longínquos tempos da minha escrita adolescente e de certa forma reproduzir a energia e dinâmica que acima referi, moldando-as àquela que é hoje a minha forma de escrever e àquele que hoje sei ser o âmbito das Crónicas de Allaryia, o que por si só me deu bastante prazer.
Resta-me esperar que o leitor tire igual prazer da leitura desta obra, que hoje posso afirmar ser o verdadeiro pivô da saga que à volta dela cresceu, não mais um mero ponto de entrada indefinido. Longe de pensar que a concluí, fico pelo menos agora com a certeza de que não a abandonei…