Agora que o Felizes Viveram Uma Vez já está nas bancas há algum tempo, achei que seria altura de elucidar os leitores quanto à minha escolha de personagens para esta nova série, até porque pelo menos duas serão algo obscuras para o público em geral. Começamos com a mais óbvia e aquela que certamente todos conhecem: Capuchinho.
Nome original: Capuchinho Vermelho
Origem: Versão escrita mais antiga é francesa, pela mão de Charles Perrault
Conto original: Le Petit Chaperon Rouge
Debati-me muito com a decisão de usar ou não a Capuchinho, tendo em conta que é provavelmente a personagem de contos de fadas que mais reinterpretações modernas sofreu, com diversas inversões de paradigma na sua relação com o Lobo Mau. A moça já foi amante de lobisomens, já foi lobisomem (voluntária ou involuntariamente), já teve um triângulo amoroso com o caçador e o lobo e já foi vista em trajes menores a eviscerar este último com uma catana para salvar a avó. Era portanto um convite implícito a ser acusado de andar atrás das ideias de outros.
Decidi correr o risco, pois não só esta minha versão do conto e da personalidade da Capuchinho Vermelho tem as suas características distintas, como também rapidamente percebi que um grupo de personagens com um reprimido, um misógino, um frustrado e uma pudica precisava de alguém como ela. Isto porque indivíduos que padeciam de licantropia sempre foram caracterizados por um forte elemento sexual, enfatizado pelos seus apetites vorazes e fraco controlo de impulsos. O aparentemente inocente conto de uma boa rapariga que leva bolos à avó e acaba comida pelo lobo é visto como uma parábola da maturidade sexual feminina, na qual a cor do capuchinho simboliza o sangue menstrual e a figura do lobo corporifica a ameaça à castidade. Seguindo essa linha de pensamento, a licantropia e a puberdade têm também os seus paralelos, uma vez que ambas causam alterações no comportamento e mudanças no corpo – mudanças essas que, no caso da sexualidade feminina, são tradicionalmente influenciadas pelas fases da lua.
Estava então o retrato tirado: uma rapariga casta e tímida com corpo de Lolita a despontar, desejada pelos homens da sua aldeia e resguardada pela mãe superprotectora, até porque a sua iminente puberdade despoletaria a maldição licantrópica herdada da avó. Avó que serviu de desculpa ideal para a sempre caricata cena do lobo com roupas de velhinha, e que acaba por servir também como o catalisador da mudança drástica que se opera na rapariga, transformando-a numa devassa libidinosa com modos quase caninos, que passa a dar largas a todos os impulsos reprimidos pela educação que tivera. De presa a predador, Capuchinho assume o papel duplo de alívio cómico e fonte de tensão sexual no seio do grupo, conferindo uma perspectiva mais terra-a-terra dos estranhos e macabros eventos que caracterizam o mundo de Felizes Viveram Uma Vez.