Super-Homem: Pelo Amanhã I

Super-Homem: Pelo Amanhã I saiu ontem para as bancas. Conforme anteriormente referi, este é um projecto de tradução no qual tenho um interesse muito pessoal, razão pela qual falo dele de forma tão aberta. Recomendo o livro a todos quantos gostem da personagem ou tenham ficado com interesse em lerem mais sobre ela após verem o Homem de Aço nos cinemas.

Uma vez que o Super-Homem dispensa apresentações, deixo aqui apenas o editorial que escrevi para o livro, uma das traduções mais complicadas que já fiz e também aquela que mais gozo me deu. Quem tiver interesse pode ler a versão uncut em Por um punhado de imagens. Sim, existe uma versão uncut. De um editorial. Um sinal claro de que me entusiasmei demasiado com o projecto…

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Um Estranho Visitante de Outro Planeta

Enquanto super-herói por excelência, o Super-Homem é dono de uma série de cognomes, entre os quais figuram epítetos como Homem de Aço, Homem do Amanhã ou Último Filho de Krypton (a par de outros, menos conhecidos mas bem mais aliterativos, como Ás da Acção ou Maravilha de Metrópolis). Um dos menos usados é Estranho Visitante de Outro Planeta, provavelmente por ter um efeito de alienação e suscitar um certo distanciamento devido à sua toada, que remete para o título de um filme sobre uma invasão alienígena, ou a descrição de um ser misterioso, quiçá ameaçador.

Está longe de ser essa a primeira coisa que vem à cabeça quando se pensa no Super-Homem, o arquétipo do salvador, o modelo heróico a partir do qual os super-heróis como os conhecemos foram moldados. Até pode ter vindo de outro planeta e ser um extraterrestre detentor de poderes que desafiam a compreensão, mas ao mesmo tempo sempre foi visto como o mais humano dos seus pares se não na acepção biológica do termo, então certamente na ética pois sempre o caracterizou uma incondicional abnegação e uma nobreza de carácter que poucos no Universo DC conseguem igualar. Nas palavras do próprio, algo retiradas do contexto de um dos mais reveladores diálogos deste tomo: «se alguém dedicar a sua vida à humanidade, acabará por se considerar como o mais humano de todos».

É esse o Super-Homem que o público em geral conhece, o herói altruísta que faz sempre aquilo que está certo, usando os seus poderes em defesa da humanidade e em prol do bem comum. Criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, o Homem de Aço foi concebido como o último sobrevivente da civilização avançada do planeta Krypton, enviado para a Terra pelos seus pais e adoptado por um casal de terráqueos. Em virtude da menor atracção gravitacional do seu novo planeta, acabou por desenvolver superpoderes, dos quais começou a fazer uso como activista social aquando da sua estreia no mítico Action Comics #1 (1938), menos preocupado em seguir a lei à letra e mais empenhado em ajudar a arraia-miúda. Filho dos tempos que os EUA então viviam durante a Grande Depressão, o Super-Homem foi durante vários anos um campeão dos oprimidos, sempre pronto a agir em nome da justiça, mesmo contra as próprias forças da autoridade, quando necessário. Não foi senão aquando do advento da 2ª Guerra Mundial que começou ele próprio a transformar-se numa figura de autoridade, perdendo gradualmente a intensidade indómita que até então o caracterizara, numa metamorfose que fez do homem do povo um campeão da liberdade.

O adolescente rebelde amadurecera e tornara-se numa figura paterna, o que de certa forma contrabalançou o seu crescente poder, pois embora no início de carreira o Super-Homem fosse incapaz de voar ou de levantar algo mais pesado que um navio, pudesse ser gravemente ferido por um míssil e fosse «apenas» mais rápido que uma bala, alguns anos mais tarde já ele sobrevivia a explosões nucleares, conseguia voar pelo espaço fora e possuía, entre outros, visão raio-X. A atracção gravitacional comparativamente mais fraca da Terra começava a ser pouco para justificar tamanhos poderes,o que motivou umas adendas posteriores à mitologia de Krypton, ficando então estabelecido que os kryptonianos não possuíam quaisquer habilidades sobre-humanas debaixo do sol vermelho que o seu planeta orbitava, mas que ganhavam poderes extraordinários quando expostos aos raios de um sol amarelo.

No entanto, o ser praticamente um semideus não o tornou menos humano aos olhos do público, pois a atitude subjacente do Super-Homem manteve-se inalterada ao longo da sua história: uma crença irredutível na capacidade das pessoas para o bem e uma implacável disponibilidade para lutar por todos por um futuro melhor para todos. O legado alienígena da personagem em nada afectava essa percepção, servindo apenas para justificar os seus poderes e, até finais da década de 50, muito pouco se escreveu acerca de Krypton. O importante era que o Super-Homem lutava pelo amanhã e, ao fazê-lo, inspirava o resto da humanidade, não a temê-lo, mas a olhar para o céu com esperança, independentemente das adversidades do presente. Esse paradigma é explorado a fundo neste volume, que o subverte e desafia ao colocar o Homem de Aço numa situação na qual ele se vê forçado a confrontar e pôr em causa tudo aquilo que representa, ao ser colocado numa situação na qual um evento misterioso causou o desaparecimento de um milhão de pessoas, entre as quais aquele que é considerado um dos mais importantes esteios da sua humanidade: Lois Lane.

Originalmente rival de local de trabalho e parte integrante de um dos mais famosos triângulos amorosos do mundo da ficção, Lois Lane e a relação dela com o Super-Homem ultrapassaram barreiras culturais e artísticas e tornaram-se parte da cultura popular. Ao longo dos anos, entre crises, fraudes matrimoniais, reinícios narrativos, histórias hipotéticas e realidades alternativas, o amor entre ambos foi explorado através de todos os prismas possíveis e imaginários, até que, no ido ano de 1996 (Superman: The Wedding Album), após seis décadas de vai-não-vai, os dois deram finalmente o nó. No entanto, votos de casamento à parte, Lois Lane sempre foi vista acima de tudo como um dos «meros mortais» através dos quais o Super-Homem aprendeu a reconhecer a natureza humana em todo o seu imperfeito esplendor, e por conseguinte um dos mais importantes elos que o unem ao seu mundo adoptivo. Aquando do evento misterioso acima referido, o Homem de Aço vê-se então atingido por dois duros golpes dos quais nem mesmo a sua sobejamente conhecida invulnerabilidade o pode resguardar: a perda da sua mulher, e o saber que falhou para com o mundo, por não ter estado presente para evitar tamanho desastre.

Em resultado do desaparecimento de Lois Lane, é-nos apresentado um Super-Homem bem mais frio e distante que aquele a que estamos habituados, quase assustador no desapego que manifesta e sentindo mais do que nunca o peso do mundo sobre os seus ombros, mesmo enquanto tenta fazer boa cara e passar uma mensagem de esperança àqueles que contam com ele para resolver tudo. Quando a história começa, o nosso herói encontra-se na penúltima fase do luto, a da depressão, na qual se desprende sistematicamente das coisas que nele possam suscitar sentimentos de amor ou afecto, o que, mais uma vez, é um estado de espírito deveras atípico para o Homem de Aço. A tristeza, o arrependimento, o medo e a incerteza de que dá mostras são uma reacção perfeitamente natural e humana em semelhante fase, mas não correspondem àquilo que o mundo espera do seu maior herói em tal situação. Que se desenganem, contudo, aqueles que possam julgar que Pelo Amanhã representa uma desconstrução gratuita da figura, ou que os eventos o transfiguram ao ponto de se tratar de outra personagem. Este Super-Homem continua a ser movido pelos mesmos motivos de sempre, tal como exemplificado pela sua sucinta resposta quando, durante a história, alguém lhe pergunta por que razão ele se dá sequer ao trabalho de tentar salvar toda a gente: «Porque posso». Mal seria, afinal de contas, se a única coisa que faz do percursor de todos os super-heróis aquilo que é fosse apenas o amor que sente por uma mulher. Temos, isso sim, um homem que, lá por que é super, não deixa de o ser que perdeu aquilo que lhe era mais querido, e que passou um ano a sofrer as consequências das decisões drásticas tomadas em resultado dessa perda.

Ainda assim, não seria de esperar ver um Super-Homem tão incerto e sorumbático quando a humanidade é vitimada por uma catástrofe sem precedentes, pois em circunstâncias normais uma situação destas seria sem sombra de dúvida «um trabalho para o Super-Homem». Acontece que, ao perder o amor da sua vida e ver-se confrontado com o seu fracasso em proteger aqueles que aprenderam a contar com ele, o Homem de Aço acaba até certo ponto por reverter ao seu legado alienígena em busca de conforto e orientação, por se sentir pela primeira vez na vida como um verdadeiro estranho visitante no seu planeta adoptivo, que devido a isso começa a ver o seu maior herói como uma potencial ameaça. Essa mesma impressão é partilhada pelos companheiros do Super-Homem na Liga da Justiça, que receiam que o maior protector da humanidade possa pô-la em risco, o que não augura nada de bom para ele ou para o mundo. Mais: o Super-Homem sempre foi uma fonte de inspiração heróica, representando, enquanto mandatário, o melhor que o género humano tem para oferecer e aquilo ao qual todas as pessoas de bem devem aspirar. O que acontece a essa noção, a partir do momento em que um símbolo de esperança como ele se arrisca a perder aquilo que faz dele humano? E assim se encontram reunidos os ingredientes para uma muito invulgar mas nem por isso menos memorável aventura do Super-Homem, neste primeiro capítulo de um polémico enredo de grande sucesso comercial, cujo mérito artístico e narrativo lhe merece o lugar nesta colecção.