Quem é a Mulher-Maravilha?

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Já está nas bancas o volume da Mulher-Maravilha, uma das mais complexas personagens da história dos comics. Coube-me a tarefa de o traduzir e de tentar englobar a intrincada e polémica história da mais famosa das amazonas num editorial, cuja primeira versão foi considerada imprópria para consumo (podem lê-la aqui). A que se segue é a versão mais decorosa, que acabou por ser aprovada.

Às mil maravilhas

Embora parte integrante da trindade dos heróis da DC (na qual invariavelmente figura em destaque, devidamente acompanhada pelos outros dois ícones Super-Homem e Batman), não será injusto dizer que a Mulher-Maravilha é bastante menos conhecida e compreendida que os seus dois companheiros pelo público em geral

O que não é de admirar, tendo em conta que os puristas da personagem que goza da afeição de alguns dos mais ferrenhos e dedicados fãs do mundo dos comics — consideram que muitos argumentistas também não a compreendem nem sabem tratar com a devida justiça. Em defesa destes autores, há que dizer que a personagem tem origens atípicas, debate-se com uma série de contradições que estão na base do seu ser e, directamente ou por tabela, sofreu talvez o maior número de crises de identidade de qualquer outro super-herói: embaixadora, pacifista, guerreira, símbolo sexual, deusa, porta-estandarte do feminismo e ícone americano. Quer sejam ou não actualmente reconhecidas, todas estas facetas em nada facilitam a tarefa de ir ao cerne da questão essencial à abordagem convincente a qualquer figura fictícia: quem é esta personagem? Quem é, afinal de contas, a Mulher-Maravilha?

Criada pelo psicólogo e escritor William Moulton Marston, que sentia haver uma lacuna por preencher no meio dos comics, a Mulher-Maravilha foi concebida como um novo tipo de super-herói: uma mulher que triunfaria, não através da violência, mas do amor. Para criar a personagem, Marston inspirou-se nas mulheres emancipadas da sua vida, baseando-a nas características a que elas davam corpo e mesmo no guarda-roupa e nos acessórios que uma delas usava, segundo reza a história. A ideia era conceber uma super-heroína que tivesse a força do Super-Homem e a complementasse com os encantos de uma mulher bela e sã de espírito, uma personagem que servisse como modelo positivo para as leitoras. Assim nasceu a Mulher-Maravilha, que se estreou no título de antologia All Star Comics #8 (EUA, 1941), dando seguimento a essa estreia com uma aventura em Sensation Comics #1 (EUA, 1942), onde aparece pela primeira vez numa capa, antes de ganhar o seu próprio título seis meses mais tarde.

Originalmente, a Mulher-Maravilha era Diana, princesa de uma tribo de amazonas que residiam num matriarcado na chamada Ilha Paraíso, onde homem algum alguma vez assentara pé. Além de ser a campeã de uma raça de mulheres já de si detentoras de atributos físicos e psíquicos sobre-humanos, Diana fora moldada a partir de argila por Hipólita, rainha das amazonas, e a deusa Afrodite concedera-lhe vida uma história com assumidos paralelos com a de Pigmaleão, rei de Chipre, que esculpiu a mulher ideal e desejou de forma tão ardente que ela vivesse, que Afrodite se compadeceu dele e concedeu vida à estátua. Quando um avião americano se despenha na Ilha Paraíso, Diana salva o piloto, naquele que é o seu primeiro contacto com um homem, e apaixona-se por ele, voluntariando-se e ganhando posteriormente o direito de o levar de volta ao «mundo do Homem», ao vencer um desafio decretado pela sua mãe. A princesa segue então com o piloto para os EUA, onde ganha pela primeira vez o cognome de «Mulher-Maravilha» e onde se torna num ícone americano, vestida a rigor com as cores da bandeira ao combater ao lado do seu amado contra forças nazis e, ocasionalmente, super-vilões. As suas aventuras cedo lhe mereceram um lugar na Sociedade da Justiça da América o primeiro grupo de super-heróis da história dos comics na qual, apesar de ser dos membros mais poderosos, recebeu de pronto o não lá muito prestigiante título de secretária.

Na década de 50, a Mulher-Maravilha passou das mãos de Marston para as de Robert Kanigher, que deu maior relevância aos elementos helénicos e mitológicos nas histórias da personagem, cujos poderes se deviam agora explicitamente às bênçãos dos deuses gregos: a beleza de Afrodite, a sabedoria de Atena, a celeridade de Hermes e a força de Hércules. Mas tudo isso deixou de fazer diferença no final dos anos 60, altura na qual, salvo algumas excepções, a popularidade dos super-heróis estava em queda. Em resposta ao zeitgeist de então e às séries televisivas de espiões que estavam em voga como Os Vingadores, a Mulher-Maravilha prescinde dos seus poderes, uniforme e título, assumindo em definitivo a identidade de Diana Prince e tornando-se numa agente secreta à imagem de Emma Peel. As histórias de guerra e super-vilões deram lugar a aventuras de espionagem, artes marciais e num claro sinal dos tempos a abertura de uma butique de acessórios da subcultura mod. Esta fase durou até ao início dos anos 70, quando a Mulher-Maravilha recuperou os seus poderes e voltou à primeira forma, chegando ao ponto de regressar no tempo à 2ª Guerra Mundial, como para matar saudades. Esta reviravolta deu-se muito por culpa da activista feminista Gloria Steinem, que crescera a ler a Mulher-Maravilha e que se insurgiu numa série de artigos e ensaios contra aquilo que via como um rebaixar do estatuto da mais famosa super-herna de todas. Este regresso às origens culminou com uma série de televisão de culto, com a vistosa Lynda Carter no papel principal (EUA, 1975), naquela que até hoje continua a ser a maior afirmação de notoriedade da personagem.

Tudo viria a mudar novamente em 1985, na Crise das Terras Infinitas (também a não perder nesta colecção). Neste evento sem precedentes, a DC Comics premiu o botão «Reiniciar» para todo o seu universo, e a Mulher-Maravilha não foi excepção, vendo novamente alterados vários aspectos da sua história, desta feita pela mão do lendário George Pérez. A origem a partir da argila manteve-se, mas os deuses que concederam os poderes a esta encarnação da personagem eram algo diferentes: a beleza de Afrodite, a sabedoria de Atena, a habilidade de discernir a verdade de Héstia, a perícia na caça de Artemisa e a força de Deméter, que substituiu Hércules apenas a celeridade de Hermes se manteve como contributo masculino no cardápio divino. Também o papel da Mulher-Maravilha mudou, passando a ser emissária e embaixadora de Temiscira (o novo nome da Ilha Paraíso, baseado na cidade ancestral das amazonas da mitologia grega), com a missão de promover a paz no mundo do patriarca, pronta a lutar por ela, caso necessário.

Muita coisa aconteceu à personagem desde então, e este editorial não tem espaço para tanto, mas com o intuito de preparar o leitor para as histórias contidas neste tomo, bastará dizer que, no espaço de quase trinta anos e entre uma série de crises de identidade, a Mulher-Maravilha encontrou uma tribo de amazonas rebeldes no Médio-Oriente, foi substituída, morta, promovida a deusa da verdade, destituída do Olimpo, substituída pela sua mãe Hipólita, forçada a assistir à destruição da Ilha Paraíso e obrigada a matar um homem a sangue-frio para salvar os seus companheiros. Situações complicadas que certamente em nada ajudaram à tarefa de Phil Jimenez e Allan Heinberg, os escribas de serviço nas duas histórias aqui apresentadas. O primeiro é considerado por muitos o discípulo do supra-referido George Pérez, e o seu capítulo Paraíso Perdido explora com sinceridade as consequências de um meio hermético como a Ilha Paraíso abrir as suas portas a pessoas do mundo exterior, ainda que essas pessoas sejam irmãs amazonas de uma outra tribo. O segundo é mais conhecido pelo seu trabalho como argumentista da série televisiva Anatomia de Grey, tendo sido recrutado para dar uma nova demão à personagem após tantos e tão traumáticos eventos, tarefa que não enceta de ânimo leve no capítulo Quem é a Mulher-Maravilha, que dá o nome a este volume.

Quem é ela, então? Ou melhor, o que é a Mulher-Maravilha? Pacifista ou guerreira nata? Porta-estandarte feminista ou símbolo do amor para homens e mulheres em igual medida? Deusa grega ou estátua de argila com pretensões de humanidade? A resposta é simples: tudo isso. Mais do que qualquer outro super-herói, a Mulher-Maravilha é mais ícone do que personagem, como o prova o facto de que, ao longo de mais de 70 anos de existência, houve quatro Mulheres-Maravilha, todas elas presentes neste tomo, e praticamente todos os elementos dessas décadas ainda se fazem sentir de uma forma ou de outra na actual encarnação da heroína. Contraditório? Até pode ser. Mas, da mesma forma que a contradição está enraizada na condição humana, será porventura essa a principal característica que torna mais familiar uma estátua de barro com poderes divinos, e que fez da Mulher-Maravilha uma figura com inegável e duradouro apelo multigeracional, merecedora do seu lugar no pódio da Trindade dos heróis da DC.