Crise nas Terras Infinitas

Em tempos de crise, um livro com semelhante título pode não dar grande vontade de ler, mas este mais recente volume da colecção Super-Heróis DC Comics vale mesmo a pena. Foi com esta saga que eu primeiro entrei no maravilhoso mundo dos comics, numa idade na qual ainda nem capaz de ler era, e em que as dramáticas e chamativas ilustrações de personagens coloridas à pancada umas com as outras ficaram para sempre gravadas na minha memória.

Infelizmente, não tive o privilégio de traduzir nenhum dos dois volumes de Crise nas Terras Infinitas, mas escrevi o editorial para o segundo tomo, que aqui deixo como reivindicação petulante da minha participação (ainda que meramente nominal) num dos projectos que mais ambicionava.

crise

Mundos viveram, mundos morreram, e
o Universo DC nunca mais foi o mesmo…

Filipe Faria

Só uma crise verdadeira ou percepcionada produz verdadeiras mudanças. Quando essa crise ocorre, os actos dependem das ideias em circulação. Acredito que essa é a nossa principal função: desenvolver alternativas às políticas vigentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível passe a politicamente inevitável.

As palavras são do economista Milton Friedman, mas aplicam-se perfeitamente àquilo que sucedeu ao Universo DC na década de 80. Com uma mitologia cada vez mais convoluta e um historial cada vez mais insondável para novos (e mesmo alguns velhos) leitores, havia necessidade premente de uma arrumação a fundo, de forma a energizar um multiverso que começava a vergar-se debaixo do próprio peso. Seria necessária uma «crise» sem precedentes para levar a cabo as «mudanças» de que o panorama da DC claramente necessitava. Os «actos» basear-se-iam nas «ideias em circulação», ou seja, o riquíssimo manancial de personagens e mundos disponíveis, e as «alternativas às políticas vigentes» passariam por uma mudança de paradigma, a partir da qual a confusa tapeçaria de múltiplos universos e infinitas terras seria unificada. O «politicamente impossível» de mudar a face de toda uma editora a partir de uma série limitada tornou-se «politicamente inevitável», e assim surgiu a Crise nas Terras Infinitas, a que este segundo volume dá dramática conclusão. Quem percepcionou a crise vivida pela DC Comics e a solucionou com outra foi Marv Wolfman, que em criança idealizara um épico com todos os seus super-heróis favoritos, e que realizou esse sonho ao escrever um dos mais importantes capítulos da história dos comics.

Tudo começou com uma personagem circunspecta com o ainda mais circunspecto nome de «Bibliotecário», criado por um jovem Marv Wolfman. No imaginário do futuro argumentista, o Bibliotecário era um corretor de informações, vivia num satélite que orbitava a Terra e vigiava sorrateiramente os super-heróis, vendendo a informação aos inimigos deles. Seria este o malfeitor para a saga idealizada por Wolfman durante a sua infância, na qual congeminara uma aventura com todos os heróis do passado, presente e futuro da DC. Uma ideia que não foi fácil de vender, pelo que Wolfman rapidamente tirou daí o sentido quando se tornou argumentista profissional no final dos anos 60, e tanto o Bibliotecário como a ideia da saga permaneceram no Limbo das criações durante mais uma década. Não foi senão na esteira do tremendo sucesso dos Novos Titãs — a série que começou a delinear o nome de Wolfman no panteão dos argumentistas de topo do seu meio — que a personagem foi por fim apresentada aos leitores com o novo nome e identidade de «Monitor» em The New Teen Titans #21 (EUA, 1982), onde aparece nas sombras como um vilão misterioso. Alguns anos mais tarde, face às provas dadas de Wolfman enquanto autor de sucesso e à inegável necessidade de revigorar as propriedades intelectuais da DC, a ambiciosa saga foi então aprovada. Finalmente, o Bibliotecário/Monitor viria a cumprir o propósito que lhe fora destinado, embora com uma finalidade bem diferente da originalmente idealizada…

Uma vez aprovado o ambicioso projecto de uma «maxi-série» para fazer tábua rasa do passado, presente e futuro de todos os cantos do Universo DC, Wolfman e o seu companheiro de armas George Pérez viram no Monitor o veículo perfeito para levar a cabo essa operação. A personagem teve direito a várias aparições ao longo de um monstruoso prelúdio de 40 números agourentos, espalhados por praticamente todas as publicações da editora enquanto se preparava os leitores para a Crise iminente. Misterioso, insondável e com acesso aos mais bem guardados segredos do multiverso, seria ele o catalisador de uma crise sem precedentes que viria a mudar o panorama da DC durante mais de vinte anos. O panorama com o qual o próprio Wolfman crescera a ler, e que iria alterar decisivamente através de uma história que idealizara desde criança, embora com repercussões que dificilmente poderia ter imaginado. A começar pelo nobre sacrifício do Monitor, o «vilão» que no volume anterior desta presente colecção deu a vida para salvar os mundos que ainda não tinham sido destruídos pela investida da sua contraparte maligna: o Antimonitor. O «Bibliotecário» fechava assim o círculo, mas o seu legado viria a perdurar, surgindo inclusive vinte anos mais tarde noutra forma e numa outra crise, e mesmo morto tornou-se literalmente parte indelével da própria estrutura do Universo DC.

E assim chegamos a este segundo volume de Crise nas Terras Infinitas, no qual a parada está mais alta do que nunca e as terras sobreviventes se vêem à mercê do terrível poder do Antimonitor, uma ameaça de tamanha capacidade destrutiva, que nem mesmo o poder conjunto dos heróis de vários mundos parece ser o suficiente para o impedir. Numa história desta natureza, face a tão poderoso algoz e com os universos a ruírem em redor dos super-heróis desesperados, seria inevitável que houvesse algumas baixas. E há, de facto, o que tornou a série mais marcante ainda, pois a morte de super-heróis era algo de extremamente incomum à época. Normalmente, esse destino era reservado a companheiros e personagens secundárias e, embora a Crise nas Terras Infinitas tivesse deixado bem claro desde cedo que ninguém estava a salvo e que o fim do universo como os leitores o conheciam estava próximo (só no volume anterior, a contagem de corpos de heróis e vilões ia já nas dezenas), ninguém teria conseguido prever o destino de duas das mais emblemáticas figuras dos comics.

No espaço de dois números (Crisis of Infinite Earths #7-8, 1985) um dos chamados «Sete Grandes» da Liga da Justiça e uma das mais queridas personagens da DC são também eles forçados a fazer o derradeiro sacrifício em prol dos seus companheiros e do que resta do multiverso. O choque da parte dos leitores foi tremendo e as mortes desses dois heróis ficaram imortalizadas como dois dos momentos mais dramáticos e memoráveis da história da DC Comics. Uma delas teve mesmo repercussões duradouras e significativas, que se fizeram sentir décadas mais tarde, mesmo no universo renovado pós-Crise — o termo que, a par de «pré-Crise», passou a situar cronologicamente a vasta história deste universo — e perdurou até ao recente advento dos Novos 52, a mais rasa das tábuas até à data… Mas essa é uma história para outro editorial.

A Crise nas Terras Infinitas foi um tremendo sucesso a todos os níveis, dando início a uma nova geração de histórias e actualizando para uma nova era o panteão dos mais famosos super-heróis do mundo. Também popularizou e abriu definitivamente o precedente para o chamado evento transversal (crossover), que desde então se tornou num dado adquirido da indústria: um evento anual a larga escala, que influencia de uma forma ou de outra quase todas as publicações de uma editora enquanto decorre, e no qual heróis morrem ou o status quo é drasticamente alterado — pelo menos durante algum tempo. Essa premissa foi cumprida a preceito pela Crise nas Terras Infinitas e as consequências foram consideráveis, deixando marcas tão profundas, que mais tarde acabou por ser encaixada como a primeira parte da chamada Trilogia do Multiverso, à qual se seguiram a Crise Infinita (2006) e a Crise Final (2008). As três formavam assim um tríptico que consistia da morte do multiverso, a reconstrução do multiverso e a saga final do multiverso, por essa ordem. Apesar dos vinte anos que separam a primeira Crise nas restantes duas (com um breve seguimento em 1994 em Zero Hora: Crise no Tempo, no qual se rectificou a díspar cronologia do Universo DC, que ficara comprometida aquando da fusão dos universos), e tal como o leitor irá perceber no final deste volume, o último capítulo da saga deixa de facto indícios que permitiam margem de manobra a suficiente para dar seguimento ao épico. Isto porque, pese embora a inegável finalidade dos eventos que ocorrem nos dois volumes da saga, muita coisa fica em aberto.

Dito isto, o legado mais duradouro da Crise vai bem além da sua classificação como talvez a mais marcante e bem arquitectada reestruturação de um universo ficcional nos comics, a derradeira sublimação do mito apocalíptico como sacrifício necessário para a renovação, e do potencial de novas histórias que despertou. Afinal, esta «maxi-série» introduziu também de forma épica e empolgante novas formas de as histórias de super-heróis interagirem com os seus contextos históricos e com a sua audiência, explorando o seu próprio historial com laivos metatextuais e introspectivos que mais tarde viriam a ser recuperados e aprofundados na Crise Final, entre outras obras de relevo. Não será, portanto, grande exagero dizer que, com este volume, o leitor tem nas suas mãos um pedaço da história, não só da DC Comics, mas de toda uma indústria que nunca mais foi a mesma desde então.