Já nas bancas, o volume que reconta a história de Barry Allen, o Flash original (embora não o primeiro), e que assinala o seu regresso ao Universo DC. A não perder, como espero vir a persuadir-vos com o editorial que se segue.
Um herói para todas as Crises
Filipe Faria
Ele pode não fazer parte da Trindade dos heróis da DC (Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha) e é frequentemente relegado para segundo plano, quando comparado aos seus mais ilustres companheiros da Liga da Justiça, por exemplo. Mas o Flash é uma das mais importantes figuras da história dos comics de super-heróis, que devem a sua continuada existência em grande parte a esta personagem e ao seu legado único.
Criado em 1940 por Gardner Fox e Harry Lampert, o primeiro Flash foi Jay Garrick, um estudante universitário que, ao inalar vapores de água dura, ganhou o poder de super-velocidade. Alcunhado de «Corredor Carmim», este Flash foi uma personagem popular na década de 40, com direito a dois títulos (Flash Comics e All-Flash Quarterly) e ao estatuto de membro fundador da Sociedade da Justiça da América, o primeiro grupo de super-heróis da história. Vivia-se então o auge da chamada Idade do Ouro dos comics, quando estes se afirmaram como uma forma de arte e a sua publicação se tornou numa indústria lucrativa. Este estado de graça duraria até ao final da 2ª Guerra Mundial, à qual se seguiu um declínio acentuado da popularidade dos super-heróis, que viram o seu mercado ser tomado de assalto por histórias de horror, crime, romance e westerns. Inúmeros títulos, incluindo os do Flash, foram cancelados nos últimos anos da década de 40, à medida que os EUA entravam num período de introspecção pós-guerra, no qual foi deixando de haver lugar para heróis patrióticos, que se viram substituídos por anti-heróis e figuras niilistas à medida que uma nação sentia a iminência da Guerra Fria. Houve sobreviventes, mas mesmo um portento como o Super-Homem — cujo Action Comics #1 dera início à própria Idade do Ouro — apenas se conseguiu destacar durante a primeira metade da década de 50 graças à publicação Superman’s Pal Jimmy Olsen, uma série de grande e duradouro sucesso, na qual o Homem de Aço servia praticamente como ajudante do seu jovem amigo em histórias de interesse humano. O mundo dos super-heróis estava em crise, portanto.
O primeiro sinal de mudança deu-se em 1954, quando, após uma série de controvérsias derivadas da alegada correlação entre a delinquência juvenil e o conteúdo dos comics (sobretudo os populares títulos de crime e horror), várias editoras decidiram implementar o Comics Code Authority. Uma vez regulado o conteúdo das suas publicações, as editoras começaram timidamente a optar novamente pelas apostas sadias e seguras do passado: os super-heróis. Havia no entanto que modernizar o material antigo, e a primeira dessas experiências foi, precisamente, o Flash, que surgiu «reembalado» com uma nova identidade, origem e uniforme em Showcase #4 (1956) pela mão de Robert Kanigher e Carmine Infantino. Este novo Flash era Barry Allen, um cientista forense cujo laboratório foi atingido por um relâmpago durante uma tempestade, banhando-o com uma solução de produtos químicos sobrecarregados que alterou a sua estrutura molecular permanentemente e fez do incauto cientista o novo Corredor Carmim. Após ler um velho comic do «velho» Flash dos anos 40(!), Barry Allen decide assumir a identidade desse herói e criar um uniforme para usar os seus poderes ao serviço da humanidade. A estreia deste novo Flash não criou grandes ondas, mas justificou uma segunda aventura em Showcase #8 no ano seguinte, no qual se registou um aumento nas vendas. Aberto este precedente, e embora o que mais vendia continuasse a ser humor, romance e western, o Flash abriu as portas para as estreias de mais heróis e nesse mesmo ano teve direito a duas outras aventuras nos #13-14 de Showcase. O crescente sucesso levou a DC Comics a devolver o Flash ao seu título epónimo, que continuou com a antiga numeração e recomeçou no número #105 (1959). Seguiram-se os regressos de Aquaman, Lanterna Verde e Arqueiro Verde, todos com novas origens e conceitos renovados, bem como uma modernização da Mulher-Maravilha e a criação da primeira super-heroína em dez anos: a Supermoça. Esta torrente de renovação criativa culminou em 1960 com a formação da sucessora da Sociedade da Justiça da América: a Liga da Justiça da América, que foi o título de maior sucesso da DC em 1961 e se tornou no ponto de referência para todo e qualquer grupo de super-heróis. A Idade da Prata dos comics começara, os super-heróis enquanto conceito estavam vivos e de boa saúde, outras editoras seguiram os passos da DC e o Flash resolvera a primeira de quatro crises.
Barry Allen viveu incontáveis aventuras, frequentemente acompanhado pelo jovem companheiro Kid Flash, e conseguiu basear mais de vinte anos de histórias à volta do aparentemente simplista conceito da velocidade que caracterizava o estilo de arte distinto usado por Carmine Infantino, cuja abordagem artística dava a impressão de movimento ao Flash nos quadradinhos. Mas não só: o Flash tem também aquela que é possivelmente a mais imaginativa galeria de vilões de qualquer herói da DC, com algozes como o Flautista, o Meteoromante, o Mestre dos Espelhos, o Gorila Grodd, o Flash Reverso e, certa vez, a própria Morte. Este nível de ameaças e o alto conceito científico do teor das suas aventuras — que frequentemente acarretavam viagens no tempo e o quebrar das barreiras que separam dimensões paralelas — obrigavam Barry Allen a ser criativo com os seus poderes de velocista, e alguns números do Flash eram autênticas lições de física (com precisão científica variável, bem entendido). Foram esses os poderes que salvaram o Universo DC nas crises subsequentes, a começar pela Crise nas Terras Infinitas, que deixou uma marca indelével no mundo dos comics. O papel do Corredor Carmim nesse épico foi fundamental, quando ultrapassou os limites da velocidade e sacrificou a própria vida para destruir o engenho apocalíptico que se preparava para obliterar o que restava de um já devassado multiverso. Tão depressa correu, que voltou atrás no tempo e se tornou no próprio relâmpago que lhe daria os seus poderes, numa recriação do símbolo de Ouroboros, a representação da eternidade da serpente que morde a própria cauda. Este fim ambíguo serviria de pretexto para o ocasional vislumbre de Barry Allen em futuras aventuras, mas após o fim desta segunda crise, o manto do Flash seria definitivamente assumido pelo seu parceiro Wally West, que até então fora o Kid Flash, e que continuou o legado do Corredor Carmim durante mais de vinte anos.
Muito aconteceu a Wally West durante esse período: duvidou durante anos estar à altura do seu mentor, mas finalmente fez por merecer o título de Flash; conheceu Bart Allen, o neto de Barry Allen, que veio do futuro e se tornou no jovem herói Impulso; casou e formou família; e descobriu a Força Aceleratriz, um conceito que viria a mudar para sempre a mitologia do Homem Mais Rápido do Mundo. Tratava-se de uma fonte de energia extra-dimensional, à qual os velocistas do Universo DC podiam aceder, cada um à sua maneira (tal como evidenciado pelos acidentes e experiências diferentes que deram a cada um dos Flashes os seus poderes) e uma espécie de vida após a morte para eles. Este último aspecto viria mais tarde a revelar-se essencial, pois a alma de Barry Allen fora parar precisamente à Força Aceleratriz, da qual emergiu num momento crucial durante a Crise Infinita (2006) para ajudar o seu antigo parceiro e o seu neto (que por essa altura já assumira a identidade de Kid Flash, em sinal de respeito para com o legado da sua família). Wally West desapareceu durante algum tempo após esse confronto, e o manto do Flash passou então temporariamente para Bart Allen, que se tornou no quarto Corredor Carmim. A terceira Crise fora solucionada…
…mas ainda faltava a Crise Final (2009), em que o derradeiro Mal regressava ao Universo DC e no qual, uma vez mais, Barry Allen viria a ser chamado a agir para evitar o fim da própria Criação. Misteriosamente trazido de volta ao mundo dos vivos em forma corpórea, a sua intervenção é novamente providencial na derrota do Mal, ao correr através do espaço e do tempo com a Morte a morder-lhe os calcanhares. Após uma ausência de duas décadas, Barry Allen regressava assim definitivamente ao mundo dos vivos, e as forças que o trouxeram de volta são explanadas neste Flash: Renascer, no qual o herói retornado questiona e tenta encontrar o seu lugar num mundo que muito lhe deve, mas que parece ter seguido em frente sem ele. Não só isso, pois a Força Aceleratriz parece ainda guardar alguns segredos surpreendentes, e o regresso de Barry Allen pode bem vir a significar um perigo mortal para todos os velocistas…
Seja como for, uma coisa é certa: Salvar o dia cabe frequentemente a heróis como o Super-Homem. Mas é ao Flash que o Universo DC deve o facto de ter sequer havido um dia para salvar ao longo de tantas crises, reais e fictícias. E esse é um legado que não pode ser ignorado.