Já nas bancas, a origem do Lanterna Verde, um herói cuja dualidade “fanfarrão com a arma mais poderosa do universo”/”pobre diabo maltratado pela vida” sempre me fascinou. A não perder.
Da noite mais densa ao dia mais claro
Filipe Faria
Para muitos, o Lanterna Verde é um daqueles heróis que se conhece, mas acerca do qual pouco se sabe, apesar de ele ser um dos «Sete Grandes» da afamada Liga da Justiça. Para isso, muito contribuiu o atribulado histórico de publicação da personagem, que apenas na última década conseguiu cimentar o seu estatuto como uma das estrelas maiores do panteão da DC. Seja como for, e independentemente do seu sucesso comercial ou capacidade de manter um periódico, o Lanterna Verde foi frequentemente uma espécie de «farol» para o Universo DC, sinalizando o rumo durante algumas das épocas mais marcantes da história da editora.
Criado por Bill Finger e Martin Nodell na Idade do Ouro dos comics, a primeira encarnação do Lanterna Verde dava pelo nome de Alan Scott, um engenheiro ferroviário cuja vida mudaria para sempre em All-American Comics #16 (1940). Indumentado com um fato particularmente chamativo, munido de um anel mágico e uma lanterna verde provenientes de um meteorito que caíra na antiga China (e que lhe caíram nas mãos para que pudesse punir os responsáveis por um mortífero acidente ferroviário), Alan Scott reunia assim os ingredientes para uma personagem que incorporava vários dos elementos pulp que capturavam o espírito da época. Aquando da sua estreia, o Lanterna Verde era um dos mais poderosos heróis do mundo, capaz de efectuar autênticos milagres com o poder aparentemente ilimitado do seu anel, que tinha contudo um ponto fraco: era incapaz de afectar madeira ou matéria vegetal. Este aparentemente arbitrário calcanhar de Aquiles era um constante entrave e empecilho nas aventuras de Alan Scott, que invariavelmente se via atingido por paus e enfrentava algozes compostos de matéria vegetal ou capazes de controlar plantas. Outro ponto fraco era a carga limitada do anel místico, que tinha de ser recarregado a cada 24 horas pela lanterna verde que dava o nome à personagem, num ritual pontuado por um simples juramento solene, que foi evoluindo ao longo dos anos e que viria a tornar-se numa peça fundamental do legado e posterior mitologia da figura. Alan Scott foi uma personagem popular nos anos 40, aventurando-se sozinho no seu próprio título e em All-Star Comics com a Sociedade da Justiça da América, da qual foi membro e líder. Porém, tal como referido num anterior editorial, os super-heróis tiveram vida complicada após o final da 2ª Guerra Mundial, e a carreira do primeiro Lanterna Verde decaiu de forma acentuada no final da década. O periódico Green Lantern foi cancelado em 1949 e foi precisa uma espera de 10 anos até a luz do Lanterna Verde tornar a luzir, como que sinalizando a alvorada da Idade da Prata dos comics.
Em 1959, e perante as claras evidências de que os leitores davam mostras de um renovado interesse por super-heróis, o lendário editor Julius Schwartz quis repetir o mesmo tratamento que fora dado a uma outra personagem dos anos 40, o Flash, e alistou John Broome e Gil Kane para recriarem o Lanterna Verde. Uma vez que o volume em mão trata precisamente da origem de Hal Jordan, o piloto de prova que se tornaria no segundo Lanterna Verde, este editorial não se alongará muito acerca da génese da personagem, mas sim das diferenças que a distinguem do seu predecessor e de como estas pautaram a evolução de uma parte considerável do Universo DC. O anel e a bateria mantiveram-se, mas a natureza de ambos era agora científica e não mística, e ambos os artefactos eram obra de uma raça de potestades benignas que dedicavam as suas vidas à protecção do universo e se auto-intitulavam de Guardiões. Desta forma, o Lanterna Verde deixou de ser um herói baseado na Terra e a jurisdição dele estendeu-se a todo um sector espacial, o que deu uma nova esfera de acção às suas aventuras, cuja dimensão se expandiu mais ainda com a inclusão de um importantíssimo novo elemento: o Corpo dos Lanternas Verdes. Esta força policial intergaláctica composta de milhares de Lanternas de todos os cantos do universo rapidamente se tornou num dos principais esteios da DC, e viria a servir de base para algumas das mais marcantes sagas das décadas seguintes. Outro aspecto que se manteve foi o aparentemente arbitrário ponto fraco do anel, sendo que a madeira se viu substituída pela cor amarela, contra a qual a energia da bateria nada podia. Desta feita, o calcanhar de Aquiles foi explicado como uma «impureza necessária» na bateria, e escusado será dizer que não houve falta de inimigos e ameaças com guarda-roupa ou tez em tons amarelados.
Este novo Lanterna Verde foi um sucesso, e Hal Jordan rapidamente ganhou a sua própria casa com o relançamento de Green Lantern em 1960, um título que, apesar do cariz cósmico das suas aventuras, pautou pela diferença de forma curiosamente mundana, nomeadamente a inclusão de personagens de minorias que não eram representadas como estereótipos, um aspecto no qual as histórias do Lanterna Verde foram pioneiras. A indústria dos comics espelhava assim as mudanças que se começavam a fazer sentir na consciência social americana do final da década de 60, sobretudo o movimento de contracultura que então predominava e que se reflectiu de forma notória no Lanterna Verde em particular. Tal como o leitor pôde constatar em Lanterna Verde e Arqueiro Verde: Inocência Perdida (outro volume da presente colecção a não perder), Hal Jordan deu corpo à desautorização das normas vigentes da sua época e sofreu uma profunda crise de identidade, que culminou com o cancelamento do seu título em 1972, e a sua viagem de auto-(re)descoberta teve de continuar na forma de histórias complementares nas páginas de The Flash durante quatro anos. Green Lantern só regressou às bancas em 1976, e continuou a espelhar os danos que a guerra do Vietname e o escândalo de Watergate haviam infligido à auto-confiança e fé dos norte-americanos na sua presidência. Hal Jordan punha cada vez mais em causa o discernimento dos Guardiões e a situação chegou a um ponto crítico na década de 80, quando Jordan se viu forçado a escolher entre o dever e o amor, e acabou por abandonar o Corpo dos Lanternas Verdes. Não foi senão após a Crise nas Terras Infinitas (um evento espoletado pelas acções de um membro renegado da raça dos Guardiões, note-se) que Hal Jordan regressou ao Corpo, mas o seu título foi novamente cancelado em 1986. O que nem por isso diminuiu o impacto da mitologia do Lanterna Verde no resto do Universo DC, tal como o atesta a mini-série Millennium (1988), na qual se revela a terrível trama milenar dos Caçadores, os predecessores do Corpo. Enquanto isso, as aventuras do Lanterna Verde prosseguiram no título de antologia Action Comics Weekly, até Green Lantern ser novamente relançado em 1990.
O pior e o melhor estavam ainda por vir, no entanto. Além de ser dos poucos heróis de alto gabarito a envelhecerem visivelmente nas páginas do seu próprio título, qual baby boomer confrontado com a sua mortalidade e com as escolhas da sua vida, Hal Jordan tornou-se subsequentemente no cordeiro sacrificial da DC em nome da mudança, a palavra de ordem da década de 90. Numa altura em que o mundo assistia a um tremendo realinhamento do poder económico e político, à proliferação dos novos média e a um crescente cepticismo para com a ordem social estabelecida, vários super-heróis tombaram ou foram substituídos, e o Lanterna Verde foi quem sofreu a mais duradoura perda. A sua cidade-natal foi nivelada e Hal Jordan, tomado pelo pesar, tentou reconstrui-la com o poder do seu anel, que lhe foi então negado pelos Guardiões. Em resultado de tão grande perda e daquilo que viu como frieza e ingratidão dos seus mestres, Jordan enlouqueceu, destruiu o Corpo dos Lanternas Verdes e tornou-se no vilão Parallax, que mais tarde foi morto ao tentar reescrever a história em Zero Hour (1994). Hal Jordan apenas regressou em definitivo uns dez anos mais tarde em Green Lantern: Rebirth (2004), uma série limitada que redimiu e ressuscitou a personagem, dando início a uma autêntica vaga revivalista na DC Comics nos anos 00, nos quais, espelhando de certa forma o saudosismo que se fazia sentir na cultura popular, o panorama da DC viu o regresso de uma série de velhas personagens e conceitos. Foi esse o princípio do apogeu do Lanterna Verde, que às mãos de Geoff Johns viu redefinidos e modernizados inúmeros aspectos da sua mitologia e se tornou no portador da tocha para o rumo narrativo do Universo DC na década seguinte, conduzindo-o através de várias sagas de enorme sucesso como Sinestro Corps War (2007), Blackest Night (2009) ou Brightest Day (2010).
Assim, ao fim de mais de 50 anos de existência (70, se contarmos com Alan Scott), o Lanterna Verde é hoje uma das séries mais bem-sucedidas da indústria, tendo dado origem a uma autêntica «família» de títulos, algo que apenas está ao alcance dos nomes maiores dos comics — um estatuto que não mais pode ser negado a esta atormentada e fascinante personagem, cuja origem é recontada neste Lanterna Verde: Origem Secreta para novas e velhas gerações de leitores em igual medida.