Já nas bancas, a história que trouxe ao mundo a versão do Super-Homem que as pessoas da minha geração conheceram. Uma das várias fontes que inspiraram elementos do recente filme Homem de Aço e uma obra clássica que merece sem dúvida ser revisitada.
Um Homem de Aço de Carne e Osso
Filipe Faria
Costuma-se dizer que nada é eterno, nem mesmo nos comics, mas o status quo das histórias e das personagens desse meio sempre deu mostras de uma tremenda resiliência. Por esse motivo, a mínima mudança nunca é assunto de pouca monta, muito menos quando ela diz respeito a uma das mais populares personagens fictícias do mundo. Muito menos quando a mudança propriamente dita é o «fim» da história dessa personagem em questão, e talvez menos ainda quando se trata de reinventar uma figura que se tornou num símbolo da nação na qual foi criada. Mas foi precisamente isso o que aconteceu ao Super-Homem no espaço de um ano, em 1986.
Já se falou amplamente da Crise nas Terras Infinitas em anteriores editoriais, e o leitor estará certamente familiarizado com as consequências que essa incontornável máxi-série teve no Universo DC, que viu reformuladas muitas das suas mais importantes personagens. Algumas continuaram simplesmente com as suas aventuras, reconhecendo os eventos e as mudanças pelos quais o universo passara, outras viram os seus títulos cancelados sem grande cerimónia, e outras ainda tiveram um ponto final nas suas histórias de forma a acomodar os seus destinos na Crise. O Super-Homem foi um caso excepcional, na medida em que teve direito a uma «festa de despedida» antes de ver reiniciada a sua narrativa, naquela que é unanimemente considerada uma das melhores histórias de sempre da personagem: Whatever Happened to the Man of Tomorrow? A força impulsionadora por detrás desta despedida foi Julius Schwartz, editor da família de títulos do Super-Homem desde 1971, e que viria também ele a despedir-se da DC em 1986, após uns memoráveis e marcantes 42 anos de serviço. O adeus do Super-Homem serviria portanto também como um adeus idóneo a uma das mais marcantes figuras da indústria, o que fazia deste projecto uma empreitada à qual só poderia ser feita justiça com a arte do prolífico Curt Swan, cujo estilo definira o Homem de Aço ao longo de três décadas, e com o argumento de um dos maiores nomes dos comics à época: Alan Moore. Neste último adeus do Super-Homem da Idade da Prata — para muitos a encarnação definitiva da personagem — são atadas todas as pontas soltas de quase cinquenta anos de aventuras num autêntico tour de force do universo do Homem de Aço, tocando em todos os elementos que tinham feito da sua família de títulos a mais popular da indústria ao longo de décadas. O resultado final é provavelmente o mais tocante canto do cisne a que qualquer super-herói alguma vez teve direito, com um final épico e comovente, numa aventura que conciliava na perfeição a extravagância da Idade da Prata com as sensibilidades mais sofisticadas da Idade do Bronze.
Ao canto do cisne seguiu-se o renascer da fénix, e o Homem de Aço regressou triunfalmente nesse mesmo ano na epónima mini-série Man of Steel pela mão de John Byrne, um dos autores mais cobiçados da década de 80. Acabado de sair da concorrência após várias séries de tremendo sucesso, Byrne foi o escolhido para relançar a mais emblemática personagem da DC Comics, reconstruindo-a praticamente a partir do zero e descartando inúmeros pilares da sua mitologia. A começar por Krypton, o planeta que durante décadas fora representado como uma civilização super-avançada e quase utópica, e cujo modo de vida idílico de certa forma inspirara o Super-Homem da Idade da Prata a lutar por um mundo melhor na Terra. Deixou de ser esse o caso quando Krypton foi reinventado como um planeta não menos tecnologicamente avançado que a sua anterior encarnação, mas agora estéril e asséptico, com uma população fria e indiferente, para a qual mesmo a procriação era um acto vil a ser levado a cabo através de matrizes incubadoras — uma mudança drástica que inspirou o Krypton a que assistimos nos cinemas no recente Man of Steel de Zack Snyder. Deixou também de haver a Supermoça e os vilões da Zona Fantasma: o Super-Homem era agora de facto o Último Filho de Krypton, mas não tinha pelo seu planeta-natal a reverência de outros tempos, vendo-se apenas como Clark Kent, um terrestre com superpoderes. Para reforçar esses laços que o uniam à Terra, os Kents, os seus pais adoptivos, estavam vivos nesta nova continuidade, contrariamente à antiga encarnação da personagem, na qual haviam falecido logo em Action Comics #1. Até então, os leitores apenas tinham conhecido o simpático casal nas páginas da revista Superboy, que relatava as aventuras da juventude do Super-Homem, mas esse passado foi apagado após a Crise nas Terras Infinitas e nesta nova continuidade os poderes do Homem de Aço só se revelaram em toda a sua plenitude muito mais tarde. Poderes esses que, ressalve-se, diminuíram consideravelmente: o Super-Homem não mais era capaz de mover planetas ou de sobreviver indefinidamente no vácuo do espaço, quanto mais viajar no tempo ou destruir sistemas solares com um espirro. Byrne fez também um esforço para fundamentar alguns dos aspectos do quotidiano que durante muitos anos tinham sido ignorados ou resolvidos com soluções demasiado convenientes: como faz o Super-Homem a barba, que na Idade da Prata simplesmente não crescia, tal como o seu cabelo? Como é que ele levanta objectos grandes e pesados sem que estes se desfaçam nas suas mãos? Como é que a roupa dele, anteriormente feita de tecido kryptoniano indestrutível, não se estraga? Aliados a uma maior ênfase nos estratagemas que Clark Kent usa para ocultar a sua identidade e justificar o seu porte físico, estes pormenores tornaram a personagem mais terra-a-terra e vulnerável do que fora em anos. E esta nova vulnerabilidade tornou mais credíveis determinados tipos de histórias ou ameaças, a começar por um novo Lex Luthor que, contrariamente ao seu passado de cientista louco, era agora um impiedoso homem de negócios multimilionário que se resguardava atrás da lei sempre que possível. Em vez de estratagemas megalómanos, invenções diabólicas e alianças com alienígenas maléficos, Luthor fazia agora uso da sua fortuna e influência para infernizar a vida do Super-Homem, que ousara destroná-lo como o indivíduo mais poderoso de Metrópolis e ganhara assim um inimigo figadal.
Por estes e por outros motivos, Man of Steel foi um projecto ousado, inédito e marcante, que pavimentou o rumo narrativo do Super-Homem durante as décadas que se seguiram. Mas há que ressalvar que, apesar de tantas e tão significativas mudanças, John Byrne não procurou reinventar a super-roda com esta mini-série, mas sim simplificar e actualizar a personagem para a audiência mais discernente dos anos 80, bem como para novos leitores que pudessem tirar proveito do ponto de entrada que o fim da Crise nas Terras Infinitas providenciara. Tudo isto fez dos anos 80 uma década que redefiniu o Super-Homem para a Idade Moderna, não só nos comics, como também em séries de televisão, videojogos e desenhos animados. Foi este o herói com o qual uma geração cresceu durante um quarto de século e que foi novamente readaptado em 2011 para toda uma nova geração no evento Os Novos 52. Novas velhas adendas foram feitas à mitologia e dados adquiridos que antes não o eram deixaram novamente de o ser, tal como aconteceu após Man of Steel e muito provavelmente tornará a acontecer no futuro. Uma coisa é certa, no entanto: independentemente dos adereços e detalhes, permanece sempre a história imortal do imigrante das estrelas que se torna no maior protector da humanidade, da dualidade de um deus entre os homens que se revela muitas vezes mais humano do que os próprios. Seja ele de aço ou do amanhã, este homem, este super-homem, é sem dúvida eterno.