Liga da Justiça / Sociedade da Justiça

Antes de mais, um bom ano para todos, e que tenham entrado de pé direito em 2014. Para abrir o ano, a mais recente entrada no projecto de tradução que me tem mantido alegre e empenhadamente ocupado: Virtude e Vício. Já nas bancas e a não perder.

ljasja


A Velha Guarda

Filipe Faria

A Liga da Justiça é um grupo que dispensa apresentações, mas o mesmo não pode ser dito dos seus predecessores na Sociedade da Justiça, a primeira congregação de super-heróis da história dos comics. Originalmente concebida como uma «montra» para personagens com pouca exposição e que apareciam apenas em títulos antológicos, a SJA viria a tornar-se num dos mais celebrados grupos da DC Comics, aliando a excelência narrativa das suas histórias ao peso histórico de uma herança que se tornou numa das principais imagens de marca da editora.

Estreando-se em All-Star Comics #3 (1940), a Sociedade da Justiça começou de forma peculiar por dois motivos. Primeiro, porque foi tecnicamente o primeiro crossover da história do meio, uma vez que continha heróis das editoras National Comics e All-American Publications (que mais tarde se viriam a fundir na DC Comics). Segundo, pelo facto de a sua génese ter sido diametricamente oposta àquele que viria a ser o procedimento-padrão para a formação de qualquer grupo de super-heróis no futuro, com as suas personagens a reunirem-se, não para combaterem uma ameaça maior que a soma das suas partes, mas para se encontrarem… para jantar. Um primeiro encontro que, tal como o leitor terá ocasião de constatar neste Virtude e Vício, viria a cunhar o espírito convival da SJA, mas que serviu como pretexto para juntar uma série de heróis díspares, em conformidade com os tempos mais simples da Idade do Ouro dos comics. Estabelecida pelo editor Sheldon Mayer, pelo argumentista Gardner Fox e um grupo de talentosos artistas que incluía Martin Nodell e Sheldon Moldoff, a Sociedade da Justiça contou com nove membros originais no início. Porém, a formação deste grupo provou ser extremamente fluida ao longo da sua existência, em parte devido a umas algo draconianas condições de associação. Nomeadamente, se um herói ganhasse o seu próprio título, tal como foi o caso das encarnações da Idade do Ouro do Flash e do Lanterna Verde, tinha de «abandonar» a Sociedade e tornava-se automaticamente membro reservista. Por esse motivo, heróis como o Super-Homem e o Batman nunca foram mais do que membros honorários, mas mesmo sem esses dois pesos-pesados, a Sociedade da Justiça era um grupo ao qual não faltava poder nem desenvoltura, contando com indivíduos como o Espectro e o Senhor Destino, além de ilustres membros com menos poder de fogo mas não menos ingenuidade, como o Gavião ou o Homem-Hora. Pugnando pela justiça e pelo sonho americano, a SJA esteve activamente envolvida na 2ª Guerra Mundial e teve inúmeros confrontos contra algozes clássicos como o monstro imortal Solomon Grundy, o viajante no tempo Per Degaton e o resto da Sociedade da Injustiça, mas o primeiro inimigo que se viu incapaz de vencer foi a queda de popularidade dos super-heróis na década de 50. All-Star Comics #57 deu lugar a All-Star Western #58, e a Sociedade da Justiça simplesmente desapareceu em 1951 sem qualquer explicação. Volvidos dez anos, e com a popularidade dos super-heróis novamente em ascensão, tudo indicava que as condições eram propícias ao regresso da SJA. Mas havia um problema, nomeadamente o facto de agora existirem versões actualizadas de antigas personagens como o Flash, o Lanterna Verde ou o Átomo, e de a Sociedade ter sido substituída por uma Liga que reunira esta nova geração de heróis. A solução veio pelas mãos (ou, melhor dizendo, os pés) do Flash, que, numa das suas aventuras, conheceu o seu predecessor da Idade do Ouro ao descobrir uma terra paralela, que a partir de então passou a ser conhecida como Terra Dois, o lar dos heróis clássicos e das contrapartes das personagens modernas que habitavam a Terra Um. Daí até a Sociedade da Justiça tornar a aparecer e conhecer a Liga da Justiça numa crise que ameaçava ambas as Terras foi uma questão de tempo (1963), e essa aventura foi de tal forma bem recebida pelos leitores, que não só o encontro LJA/SJA se tornou numa tradição anual que viria a durar mais de 20 anos, como também foi cunhado o termo «Crise» para intitular eventos de grande escala no Universo DC. Para além disso, abrira-se o precedente para a criação de outras Terras que pudessem albergar propriedades intelectuais que não encaixavam bem na continuidade principal da DC, e o daí resultante manancial de histórias marcou toda uma época.

All-Star Comics regressaria por fim em 1976 e foi nas páginas desse título que se começou a abordar o elefante na sala: se estas personagens tinham combatido na 2ª Guerra Mundial, teriam forçosamente de ser mais velhas que as que apenas se tinham estreado na década de 60, por exemplo. Em conformidade com esse facto, foram criadas versões da Terra Dois do Super-Homem, do Batman e da Mulher-Maravilha, os membros do grupo começaram a ostentar rugas e cabelos grisalhos, e veio a saber-se que várias das personagens tinham entretanto formado família. Alguns desses descendentes juntaram-se aos seus progenitores na SJA, mas subsequentemente formaram o seu próprio grupo, a Corporação Infinito, naquele que se adivinhava um gradual passar da tocha para a nova geração de super-heróis da Terra Dois, entre os quais se incluíam os filhos do Lanterna Verde, do Batman e da Mulher-Maravilha. E é esta a mais duradoura marca que a Sociedade da Justiça deixou no Universo DC, exemplificando como nenhum outro grupo o conceito da descendência heróica, tal como personificada por jovens super-heróis que honram e dão continuidade à tradição dos seus mentores — um papel semelhante ao representado pelos Novos Titãs, os companheiros dos heróis maiores da Terra Um, embora a um nível bem menos individualista e rebelde. Porém, a questão dos legados tornar-se-ia algo confusa após a Crise nas Terras Infinitas, que unificou todas as Terras numa só e levou a que praticamente todas as personagens da Idade do Ouro fossem postas de lado no especial The Last Days of the Justice Society, em que o grupo se viu aprisionado numa batalha interdimensional eterna no Limbo, um destino ao qual apenas um punhado de membros e a Corporação Infinito escaparam. Os heróis da Sociedade da Justiça tornavam-se assim nos predecessores de facto da Liga da Justiça, mas faziam agora parte do folclore do Universo DC, só que o interesse e saudosismo dos leitores levaria ao regresso da SJA na mini-série Armageddon Inferno (1992), um regresso que viria a culminar numa tragédia em 1994 no evento Zero Hour, no qual três membros séniores foram mortos e os restantes viram o tempo cobrar finalmente a dívida que tinham para com ele. Apenas três heróis permaneceriam no activo, e seriam eles as velhas aparas que cinco anos mais tarde tornariam a atear a tocha que a SJA nunca deixara de ostentar.

Em 1999, James Robinson e David S. Goyer (autor e argumentista de filmes como a recente trilogia Batman e Homem de Aço) mantiveram-se fiéis ao espírito geracional da Sociedade da Justiça, juntando os veteraníssimos membros a uma série de descendentes do rol original, entre os quais se incluíam netos, filhos, afilhados, sucessores espirituais, reencarnações e clones biomecânicos do futuro. Esta nova encarnação, simplesmente intitulada JSA, foi muito bem recebida pelo público, atingindo o pico da sua popularidade quando Geoff Johns, principal escriba das histórias contidas neste volume, assumiu o leme da publicação num trajecto narrativo que durou uma década. Virtude e Vício foi dos pontos altos desse trajecto e — com uma batalha ao lado da Liga da Justiça contra dois dos mais terríveis inimigos das duas equipas a servir de pano de fundo — exemplifica na perfeição a já referida idiossincrasia do legado heróico que sempre caracterizou a SJA. A partir do momento em que Barry Allen, o Flash dos anos 60, se inspirou nas histórias de Jay Garrick, o Flash dos anos 40, para assumir a sua identidade super-heróica, criou-se um precedente que se tornou num dos esteios da DC Comics e numa das características que mais distingue a editora da sua concorrência, nomeadamente o respeito pelo passado tanto a nível ficcional como meta-ficcional. Parafraseando as palavras do autor inglês Anthony Burgess, há que ter presente de onde viemos e celebrá-lo, pois lembrarmo-nos da nossa origem faz parte do trajecto rumo ao nosso destino. E esse tornou-se num dos axiomas da DC, algo que nem mesmo Crises e afins tábuas rasas conseguiram fazer esquecer.