“Está pronta a assinar a confissão? Ou quer que lhe dê uma amostra do que aquela arma sentiu quando apliquei pressão?”
“Veja a facilidade com que torço esta barra de aço nas minhas mãos — podia ser o seu pescoço!”
“Andor! E diga ao engenheiro de controlo que, se ele me tirar do ar, torço-lhe o pescoço!”
Palavras fortes, agressivas e intimidadoras, sem dúvida. O tipo de ameaças que nos habituámos a ouvir da boca de vigilantes que tentam incutir o medo no coração dos criminosos e que fazem da violência uma das suas principais ferramentas, mas nunca de heróis como o Super-Homem. No entanto, as supra-citadas frases vieram precisamente da boca do Homem de Aço, tal como escritas e traduzidas em arte pelas mãos dos seus criadores Jerry Siegel e Joe Shuster em Action Comics #1, #2 e #12 (EUA, 1938-1939), e soam sobremodo estranhas hoje. Afinal, a ideia do Super-Homem que actualmente se encontra cunhada na consciência colectiva e na cultura pop é a da figura de autoridade, a entidade paternal e bondosa que, enquanto protege o mundo de ameaças intergalácticas, ciborgues movidos a minérios alienígenas e afins, faz breves intervalos para pedir calmamente a jovens que diminuam o volume do rádio para não incomodarem os seus vizinhos. Mas o Super-Homem que actualmente conhecemos foi fruto do seu tempo, tal como o foi o do final dos anos 30, a criação original de dois filhos de emigrantes que viveram nos EUA da Grande Depressão — um tempo fértil para o nascimento de um campeão do povo espezinhado pelas elites políticas, neste caso um alienígena superpoderoso criado por um humilde casal “sal da terra”. Coincidência ou não, a verdade é que a crise económica global que se vive actualmente é tida por muitos como uma nova Grande Depressão, e eis senão quando surge um “novo” Super-Homem em 2011, com uma visão do mundo com demarcadas diferenças daquela que o caracterizou nas últimas décadas.
Como é evidente, poder-se-á dizer que todas as épocas clamaram pelo seu próprio campeão dos oprimidos, por alguém que lutasse por aqueles que se perdem nas entrelinhas da lei e que colocasse o bem do indivíduo acima da necessidade pragmática de quebrar ovos para fazer omeletes. E seria verdade. Mas também não é menos verdadeiro constatar que o final dos anos trinta e o caminho rumo à segunda década de 2000 deram origem a um Super-Homem muito, muito diferente daquele a que nos habituámos ao longo de todas as décadas desse intervalo. O Super-Homem que evoluiu para uma figura de autoridade durante a Segunda Guerra Mundial, que, de irmão mais velho, forte e rebelde com o qual se pode contar para resolver os problemas do bairro à força, se tornou num ser quase messiânico, uma figura paterna conciliadora que acusava a responsabilidade acrescida do seu cada vez mais vasto poder. Um herói que tinha freio nas suas habilidades quase divinas e que nunca colocava os seus sentimentos pessoais acima da lei, representando assim a antítese da corrupção absoluta que o poder absoluto acarreta. Um problema que, como é evidente, nunca se colocou ao Homem de Aço nos primeiros anos da sua carreira, pois, embora tremendamente poderoso à sua maneira, não seria sequer capaz de despentear o famoso caracol em forma de ‘S’ do Super-Homem das décadas seguintes.
O que nos traz aos dias de hoje, ao protagonista deste Contra o Mundo, em que Grant Morrison apresenta ao dito mundo um “novo” Super-Homem, cuja personalidade é um decalque intencional e modernizado da do dos anos 30, e assim levanta um dilema interessante. Isto porque, embora Morrison inicie a história com um Super-Homem ainda incapaz de voar, não tão forte assim, consideravelmente menos rápido e menos resistente por várias ordens de magnitude, o arco termina com o Último Filho de Krypton a descobrir o seu legado e a ver o seu poder crescer. Ou seja, acabamos com um Super-Homem com todo o poder que se lhe conhece, mas sem uma série dos traços de personalidade com que ele o temperara nas décadas anteriores. Este Homem de Aço, tal como o de Siegel e Shuster, está mais preocupado com a justiça que com a letra da lei, não tem qualquer pejo em fazer frente às forças da autoridade e deixá-las com algumas nódoas negras se achar que estão comprometidas ou que lhe desejam mal e, à falta de termo melhor, tem ainda sangue na guelra. Em suma, um regresso ao irmão mais velho que bate nos rufias e naqueles que depredam os mais fracos, uma força pelo bem desenfreada que, não sendo propriamente um fora-da-lei, dá mais valor à sua consciência moldada pelos valores que os pais lhe incutiram do que às leis e regras que lhe são ditadas. Um Super-Homem estouvado e sem papas na língua para os conturbados tempos que o Ocidente vive, em que vê tremidas tantas das certezas que tinha por dados adquiridos.
Felizmente que, para tal, pudemos contar com um autor do calibre de Grant Morrison, talvez dos escribas mais versados na história e na essência do Homem de Aço, e possivelmente o autor mais indicado para tão ousado regresso às raízes de uma das mais icónicas personagens fictícias do mundo. Neste primeiro arco narrativo da epopeia de 18 números que concebeu para o Super-Homem dos Novos 52, o argumentista escocês soube revestir esta sua complexa e abrangente história de um corpus vivo que engloba o passado do personagem, dando-lhe vida própria e prestando homenagem ao seu legado, para que não nos esqueçamos dele mesmo enquanto seguimos em frente. Dessa forma, o “novo” Super-Homem é como que legitimado pelos elementos do seu passado com que a epopeia de Morrison foi polvilhada: o sargento Casey, presença frequente nas páginas de Action Comics e Superman na Idade do Ouro, como representante da lei com que o Super-Homem por vezes se confrontava; George Taylor, editor do Daily Star, o primeiro jornal em que Clark Kent trabalhou; a alusão aos três membros fundadores da Legião dos Super-Heróis que o visitavam no passado (os tais “dois homens e uma mulher — loura”); a referência ao Smallville Sentinel, um dos muitos nomes do jornal da terra-natal de Clark Kent na revista Superboy; o toque do telemóvel de Jimmy Olsen (“zee zee zee”), que serve como homenagem ao som do relógio sinalizador que o jovem fotógrafo usava no passado quando precisava da ajuda do Super-Homem, etc. Mas também o uso de nomes que fazem parte do historial de inimigos, romances e aliados do Homem de Aço, como Nyxly, Lyla Lerrol e Yod-Colu, este último um verdadeiro “ovo de Páscoa” para fãs atentos, uma vez que aglutina os dois nomes pelos quais foi conhecido o planeta-natal de um dos maiores inimigos do Super-Homem.
Para ajudar a dar vida à fervilhante imaginação de Morrisson, temos Rags Morales, com cuja arte característica os leitores certamente já se terão familiarizado nas duas anteriores colecções da Levoir (nos volumes Crise de Identidade e Aliados e Inimigos), e que consegue desenhar um Clark Kent bem distinto do seu alter ego super-heróico, mediando entre o caricato e o realista que é o estado que melhor caracteriza a mais famosa dicotomia super-heróica da ficção. Embora também este Clark Kent seja bem diferente daquele a que nos habituámos, insolente e atrevido e aqui representando o papel de um indivíduo impotente mas desbocado, ao contrário da persona inofensiva de cordeiro manso por que optara em eras anteriores.
Em conclusão, e tomando por base o argumento d’O Cavaleiro das Trevas e as palavras de David S. Goyer aquando da promoção do filme Homem de Aço, resta-nos esperar que o tempo nos ajude a perceber se este é o Super-Homem de que o mundo precisa, ou apenas aquele que merece…