“Reputações sobem e descem quase tão regularmente quanto as marés.”
— Peter Benchley
O facto de estas palavras provirem do autor de Tubarão é sem dúvida idóneo para Aquaman, mas a verdade é que assentam na perfeição ao longo percurso narrativo do Rei dos Sete Mares. Nas últimas décadas, este personagem foi um dos alvos de estimação da cultura popular, devido à sua indumentária e ao facto de o seu poder mais notável ser o facto de “falar” com peixes. Mas a verdade é que Aquaman é das mais historiadas figuras da DC, com mais de setenta anos de história e uma presença assídua em merchandising ao longo das décadas, além de ter sido um dos únicos heróis dessa editora que continuaram a ser publicados durante os negros anos 50, nos quais os comics de super-heróis eram uma espécie em vias de extinção. Qual o segredo de tamanha longevidade e resiliência?
Criado em 1941 por Paul Norris, Aquaman estreou-se em More Fun Comics #73, e a primeira das suas várias origens foi a do filho de um explorador submarino que descobrira as ruínas da Atlântida, onde teve acesso ao avançado conhecimento atlante, que lhe permitiu ensinar o seu filho a respirar debaixo de água, falar com criaturas marítimas e fazer uso do “poder do mar” para se tornar mais forte e rápido. Nesta sua encarnação da Idade do Ouro, Aquaman não tinha nome nem quaisquer pretensões a reinar os mares, e as suas aventuras oceânicas consistiam sobretudo em atacar submarinos nazis e infernizar a vida a piratas. Em 1946, mudou de casa para Adventure Comics, onde se passaram vários anos sem que nada de extraordinário acontecesse na vida de Aquaman, em grande parte devido à ausência de personagens recorrentes. Tudo viria a mudar em Adventure Comics #269 (1960), quando surgiu o jovem Aqualad, um atlante que fora exilado numa cápsula selada devido a um medo patológico de – pasme-se – peixes. Aquaman curou o jovem da fobia e passou a ter um parceiro, à semelhança do que já acontecera com Batman, Flash e Arqueiro Verde, tal como era prática corrente numa época em que o grande objectivo das editoras era atrair mais leitores jovens.
Seguiu-se então um período de “audições”, durante o qual a DC tentou avaliar a capacidade de Aquaman de manter o seu próprio título, e o herói passou pelos periódicos Showcase, Detective Comics e World’s Finest Comics, até merecer por fim a sua própria série, Aquaman, em 1962. Estava-se então já em plena Idade da Prata, e as origens do personagem tinham sido entretanto redefinidas e aprofundadas por Robert Bernstein e Ramona Fradon: Aquaman tinha agora um nome, Arthur Curry, e era o filho de um faroleiro e uma atlante, sendo que, nesta nova encarnação, a Atlântida submersa ainda era povoada e viria a causar a primeira clivagem nas lealdades deste filho da terra e do mar. Este Aquaman detinha agora o controlo total sobre as criaturas marítimas e dava mostras de maior força e velocidade, um incremento contrabalançado por uma “kryptonite”: a necessidade de estar em contacto com água pelo menos uma vez a cada hora, sob pena de morrer desidratado. Coroado rei da Atlântida e dos Sete Mares em reconhecimento dos serviços prestados à nação submarina, Aquaman destacou-se dos demais heróis por outro motivo: apaixonou-se por Mera, uma princesa extra-dimensional, casou com ela e teve um filho — uma série de eventos sem precedentes, uma vez que heróis raramente casavam, e certamente nunca tinham filhos. Aquaman era um herói cuja narrativa de facto progredia, o que, aliado à série animada The Superman-Aquaman Hour of Adventure (1967-1968) fez da década de 60 a época de maior sucesso de Aquaman até à data.
Mas a ventura de Aquaman veio e foi como as caprichosas marés. O seu título foi cancelado nos anos 70 e o Rei dos Sete Mares regressou às páginas de Adventure Comics, onde contudo se tornou rapidamente no protagonista principal desse periódico e tornou a encontrar o sucesso, em grande parte graças ao talento de nomes como Paul Levitz ou David Michelinie, e da arte dos conceituadíssimos Mike Grell e Jim Aparo. Foi também em Adventure Comics que se iniciou a mais trágica e marcante aventura do Rei dos Sete Mares, a postumamente intitulada Death of a Prince: uma saga que correu 25 números e reviveu a série Aquaman em 1977. Após uma verdadeira maratona de combates contra a sua galeria de vilões, durante a qual os seus deveres para com o seu reino subaquático e os seus laços com a terra entram novamente em conflito, Aquaman cai na armadilha do seu arqui-inimigo Jamanta Negra, que resulta na morte do seu filho e lhe inflige danos irreparáveis ao casamento, causando também um cisma entre o herói e o seu parceiro Aqualad, que então se separa dele. Uma vez mais, as aventuras de Aquaman destacavam-se pelo seu destemor em quebrar barreiras, numa saga que, além de elevar o Jamanta Negra ao estatuto de inimigo mortal do Rei dos Sete Mares, também revelou a sua identidade como o primeiro supervilão negro da DC.
As ondas de choque de Death of a Prince fizeram-se sentir durante décadas, nas quais Aquaman foi alternando entre a depressão, a solidão, a irresponsabilidade e o conformismo. A sua relação com Mera nunca mais foi a mesma, nem mesmo após a Crise nas Terras Infinitas reescrever a mitologia e origem do personagem, que passou a ser filho de dois atlantes: a rainha Atlanna e Atlan, um feiticeiro da cidade de Posídonis. Este Aquaman fora exilado enquanto bebé devido ao seu cabelo louro, sinal de mau agouro para a nação subaquática, e criado por um faroleiro chamado Arthur Curry, cujo nome o herói adoptou. Após várias aventuras, acabou por ser coroado rei dos Sete Mares e a sua história seguiu então um rumo semelhante ao da era anterior, sendo que a trágica morte do seu filho se manteve. Nos anos 90, e pela mão de Peter David, o herói teve a sua mais duradoura série de sempre, numa fase em que, agravando as suas já significativas perdas, Aquaman perdeu a mão e tornou-se num herói consideravelmente mais agressivo, impulsivo e obstinado. Não foi senão ao fim de vários anos, com várias Crises e a sua própria morte pelo meio, que a vida começou a correr um pouco melhor ao Rei dos Sete Mares. Aquaman é actualmente o filho de um faroleiro e uma exilada atlante, e permanece dividido entre os seus laços com a terra e os seus deveres regenciais no mar, mas a trágica morte do seu filho e os problemas matrimoniais foram apagados da continuidade. O seu título foi reiniciado por Geoff Johns e Ivan Reis, cujo talento e nome trouxeram a Aquaman um sucesso comercial sem precedentes, e é precisamente o primeiro capítulo dessa empolgante nova era do Rei dos Sete Mares que os leitores poderão ler neste O Abismo.
Aquaman está neste momento numa fase de maré alta, mas dificilmente teria chegado aqui se não fosse um personagem com um qualquer atractivo que lhe permitiu sobreviver à caprichosa indústria dos comics durante tantos anos. Apesar da sua natureza subaquática, muitos consideram-no mais acessível do que os seus imponente pares na Liga da Justiça, talvez devido à repetida ocorrência de decisões impulsivas e impensadas na vida dele, e do subsequente arrependimento que o acompanhou. Seja ele o derradeiro espírito livre solto nas infinitas maravilhas e aventuras do oceano, ou o derradeiro solipsista a errar pelos mares fora, incapaz de conciliar responsabilidades régias e matrimoniais com a sua natureza independente e quase selvagem, uma coisa é certa: trata-se de um personagem complexo e extremamente humano nas suas falhas, tão vulnerável às volúveis marés da vida quanto o mais comum dos mortais. Afinal de contas, falar com peixes não resolve todos os problemas…