Saga das Trevas Eternas

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Entre o passado e o futuro

Três jovens heróis do séc. XXX viajaram até ao séc. XX para conhecerem a lenda que os havia inspirado, convidando-o de seguida para viajar com eles até ao futuro e juntar-se ao “clube dos super-heróis” por eles formado. Assim reza a história em Adventure Comics #247 (EUA, 1958), naquele que não se queria como mais que um fait divers na vida do Super-Homem, o personagem principal desse periódico, que relatava as aventuras da sua juventude a par da revista-irmã Superboy. No entanto, a imaginação dos leitores foi estimulada por esses três jovens heróis do futuro e a “Legião” à qual eles pertenciam, e o interesse manifestado não passou despercebido a Mort Weisinger, o lendário editor da família de títulos do Super-Homem. Sempre atento às opiniões dos leitores e mais que disposto a fazer uso de uma boa ideia quando ela lhe era apresentada, Weisinger fez parceria com os que lhe enviavam sugestões interessantes e, juntos, foram dando forma à Legião à medida que o grupo se ia tornando parte integrante de Adventure Comics. Novos heróis foram criados e líderes da Legião foram eleitos, e Weisinger foi também astuto o suficiente para perceber quais os leitores que tinham estofo de escritores, abrindo as portas a talentos como Jim Shooter, E. Nelson Bridwell e Cary Bates, todos eles futuros argumentistas de histórias do grupo. Era nesta síntese entre o passado e o presente, na forma de um editor adulto e os leitores jovens, que se ia forjando o futuro em que vivia a Legião dos Super-Heróis.

No entanto, apesar de ter ganhado fama suficiente para passar a partilhar com Superboy o título e o protagonismo da sua própria revista no início dos anos 70, a Legião dos Super-Heróis foi provando ser um desafio complicado para muitos autores nas décadas subsequentes. A começar pelo número de personagens, que faziam jus ao título do grupo e eram um autêntico pesadelo para muitos artistas, tal como viria a descobrir Murray Boltinoff, editor de Superboy and the Legion of Super-Heroes. Parafraseando o próprio: na altura, havia pouca gente a trabalhar na indústria dos comics por amor ao meio e aos personagens, e a maior parte dos artistas preferia um único protagonista cujas aventuras ocorressem no presente, do que uma verdadeira “legião” com dezenas de personagens que viviam no futuro, e que, ainda por cima, tinham fãs tão fervorosos, participativos e exigentes. Havia ainda o preconceito de que a Legião e os seus leitores se tornaram alvo em décadas subsequentes, devido a idiossincrasias como a excentricidade das aventuras e dos poderes de alguns dos Legionários, ou os nomes de personagens que, já jovens adultos, continuavam a ter lad, lass, boy ou girl nos cognomes. A agravar este problema, a Legião raramente conseguiu afirmar-se como algo de verdadeiramente futurista, fosse embora essa a essência das suas aventuras. Podia haver gelatarias com sabores intergalácticos, mas quem servia os gelados era um indivíduo com avental e um clássico casquete branco; podia haver robôs nas escolas, mas os alunos continuavam a sentar-se em cadeiras enquanto o professor leccionava diante de um quadro; podia haver alienígenas num bar e bebidas com nomes estranhos, mas o proprietário continuava atrás do balcão a limpar copos com uma toalha, e assim por diante. O ambiente social, a linguagem, tudo era estranhamente contemporâneo, apesar de as histórias decorrerem 1000 anos no futuro e pela galáxia fora, e embora isso não tivesse impedido que grandes e memoráveis aventuras da Legião fossem contadas, faltava uma unidade de efeito ao séc. XXX, uma visão unificada que guiasse a abordagem a tão único grupo de heróis. Assim, não é grande surpresa que, durante a década de 70, a Legião tivesse tido nada menos que nove argumentistas, vinte e um artistas e quatro editores diferentes, todos incapazes de conciliarem verdadeiramente o passado excêntrico do grupo com o futuro vanguardista em que ele supostamente militava… até que um desses nomes regressou para inverter essa tendência de uma vez por todas.

Paul Levitz tinha já escrito cerca de duas dúzias de histórias dos Legionários durante os últimos anos da década de 70, e regressou à revista em 1981. O argumentista reambientou-se ao séc. XXX, tirando proveito das lições que aprendera e fazendo uso da sua familiaridade com os membros do vasto grupo, o que lhe permitiu trazer a necessária estabilidade e consistência ao título, antes de começar a dar-lhe a direcção que viria a redefinir a Legião dos Super-Heróis. Um processo que se iniciou em definitivo a partir do momento em que Keith Giffen entrou em cena, em Legion of Super-Heroes #285 (EUA, 1982), pois Giffen era fã assumido da Legião e começava a revelar-se como um dos mais empolgantes talentos artísticos da DC, um autodidacta que bebia de várias fontes e influências e que trouxe ao livro um traço arrojado, experimental e bem distinto — em suma, exactamente aquilo de que a Legião dos Super-Heróis precisava e os resultados não tardaram a fazer-se sentir. Com Levitz e Giffen ao leme (e com menção honrosa para a arte-final de Larry Mahlstedt), o séc. XXX ganhou vida e forma, à medida que os dois construíam metódica e detalhadamente um universo de ficção científica que, com o passar dos meses, se ia tornando cada vez mais verosímil e cativante. A arte de Giffen dava vida ao futuro, cunhando-o com uma estética muito própria e indubitavelmente futurista, mas estes pormenores artísticos de pouco teriam importado, não fosse a exímia habilidade de Levitz para entretecer tramas secundárias e o enredo principal, e fazer uso do vasto (e ainda crescente!) leque de personagens do mundo da Legião, com uma rotatividade que assegurava que havia sempre algo a acontecer e a desenvolver-se com algum personagem. E fê-lo de uma forma exímia, que lhe permitiu deixar pendentes uma série de desenvolvimentos em que mais tarde podia pegar de forma natural, gerindo a Legião numa mistura perfeita de melodrama, aventuras super-heróicas no cosmos e um abordar das questões sociológicas no espaço pós-colonial do futuro.

A genuína paixão e inegável talento da dupla Levitz/Giffen foi a resposta às preces dos fãs da Legião, e a revista tornou-se num dos títulos da linha da DC com maior sucesso da década de 80, que é quase unanimemente considerada a melhor era da história do grupo, muito por culpa do autêntico trampolim para o estrelato que foi a aventura que o leitor agora tem em mãos. A Saga das Trevas Eternas foi construída aos poucos, prenunciada com um painel sinistro aqui, uma aparentemente inconsequente aventura ali, até culminar num épico de cinco partes explosivas, com um vilão à altura completamente inesperado, e um enredo meticulosamente urdido por dois artistas na plenitude dos seus poderes criativos. Leitores novos da Legião poderão porventura sentir-se algo perdidos de início, mas é precisamente isso o que deve acontecer: devem deixar-se imergir no vasto e fantástico universo criado por Levitz e Giffen, emaranhar-se na complexa rede de relações interpessoais entre os Legionários, e perder-se nas coloridas personagens secundárias e terciárias que lhe dão cor — em suma, devem deixar-se levar por um verdadeiro clássico dos comics, que continua a ser de leitura obrigatória para qualquer autor que ambicione escrever um épico super-heróico com alma e personalidade. Porque, às vezes, não há nada como reexaminarmos o passado para redefinirmos as nossas expectativas do futuro.

Longa Vida à Legião!