A morte de Barry Allen, o segundo Flash, após a Crise nas Terras Infinitas, como que espoletou uma reacção em cadeia na década seguinte: o Super-Homem morreu, o Batman ficou inválido, a Mulher-Maravilha foi deposta, o Lanterna Verde foi corrompido e sacrificou-se, e o Arqueiro Verde deu também ele a vida. Todos esses heróis foram substituídos, uns temporariamente, outros naquela que parecia ser uma mudança definitiva, o que, sem demérito dos seus substitutos — alguns dos quais criaram as suas próprias lendas e legados, tais como Wally West com o manto do Flash e Kyle Rayner com o do Lanterna Verde — fez da década de 90 uma época de grandes incertezas nos comics. Como é evidente, a reacção nostálgica de quem crescera a ler as histórias desses heróis falecidos seria inevitável, tal como se veio a verificar após o virar do milénio. Um dos arautos das mudanças que viriam nos anos seguintes foi sem sombra de dúvida Flash/Green Lantern: The Brave and the Bold, uma mini-série lançada entre 1999 e 2000, que revisitava uma das mais sinceras amizades da DC Comics. E logo aquela entre dois dos seus mais icónicos heróis que, à altura e contra todas as regras do meio e da sua natureza cíclica, permaneciam mortos.
O Flash (Barry Allen) e o Lanterna Verde (Hal Jordan) conheceram-se pela primeira vez em The Brave and the Bold #28 (EUA, 1960), naquela que foi também a estreia da Liga da Justiça, mas a primeira parceria individual entre os dois só se daria dois anos mais tarde em Green Lantern #13 (EUA, 1962), numa aventura em que ambos têm de unir esforços para vencer uma ameaça alienígena, e acabam por confiar as suas identidades um ao outro. Ao contrário do que acontecera com o Super-Homem e o Batman, em que as identidades secretas de ambos foram reveladas por acidente no primeiro encontro entre os dois, o Flash e o Lanterna Verde deixavam logo à partida claro que a sua amizade se iria pautar por trâmites diferentes, com uma camaradagem genuína que ia muito para além do respeito mútuo que unia os Melhores do Mundo. E assim foi, com um companheirismo e cumplicidade que cresceram e se desenvolveram ao longo dos anos, mesmo a nível extra-narrativo, quando a revista do Flash foi a escolhida para acomodar as histórias do Lanterna Verde entre 1972 e 1976, em virtude do cancelamento da revista do Gladiador Esmeralda. Uma amizade que foi cruelmente interrompida com a morte de Barry Allen na Crise das Terras Infinitas, sem que os dois amigos tivessem sequer ocasião de se despedir, e que tornou mais saudosa ainda — e talvez até mesmo algo romantizada em retrospectiva — a amizade entre ambos, tal como Mark Waid e Tom Peyer a revisitam neste O Audaz e o Destemido.
Detentor de um conhecimento quase enciclopédico acerca do Universo DC, Waid tratou de desenterrar todo um rol de personagens e referências obscuras com que polvilhar esta deliciosa viagem ao passado, num complicado exercício de equilíbrio o entre certificar-se de que leitores de longa data se sentiriam reconfortados e o não contar uma história demasiadamente hermética para novos leitores. O facto de Waid e Peyer terem conseguido fazê-lo é testemunho da sua habilidade enquanto contadores de histórias, pois fizeram da continuidade uma ferramenta para explicar a razão de ser da amizade entre Barry Allen e Hal Jordan, da mesma forma que velhos amigos reminisceriam acerca de eventos passados que um ouvinte poderia desconhecer, mas que facilmente compreenderia devido ao contexto em que eles eram contados. Desta forma, a nostalgia torna-se apenas num adereço agradável para quem a aprecia, uma ferramenta para contar a história — em vez da razão de ser da própria história — a começar pela clássica e nada subtil divisão de cinco das seis aventuras em três “partes” ou “capítulos”, uma convenção de décadas dos comics de super-heróis. A devida homenagem é também prestada aos mais importantes criadores do Flash e do Lanterna Verde, cujos nomes aparecem clara mas discretamente expostos logo na primeira aventura, num painel que honra os incontornáveis nomes associados aos dois personagens, e O Audaz e o Destemido está repleto destes pequenos piscares de olho ao leitor mais atento e conhecedor, que dão mais cor ao mundo e à história mesmo para aqueles a quem nada dizem. No campo da arte, temos Barry Kitson, um dos representantes artísticos da invasão britânica dos comics do final dos anos 80, que se destacou na DC com o seu trabalho na mini-série JLA: Year One e no título L.E.G.I.O.N., dois projectos em que também trabalhou com Mark Waid, com o qual viria a unir forças novamente em 2004 para relançar a Legião dos Super-Heróis. O seu traço de linhas limpas, a composição irrepreensível e os rostos extremamente expressivos dos personagens que desenha fizeram dele o artista ideal para uma história que se queria em igual medida clássica e moderna, embora fosse apenas o arte-finalista de um dos números deste volume, que contou com a mão de Tom Grindberg. Outro artista britânico, Grindberg fez um excelente trabalho a tentar evocar o traço do inimitável Neal Adams na história que conta com o Arqueiro Verde, e que canaliza na perfeição o espírito da época em que este herói fez parceria com o Lanterna Verde para percorrer a América e reavaliar as suas prioridades e perspectiva do mundo (tal como os leitores portugueses tiveram ocasião de ler no volume Inocência Perdida, da primeira colecção da DC Comics publicada pela Levoir).
O Super-Homem e o Batman podem ser os dois maiores nomes da DC e de toda a indústria dos comics. Na DC, os dois formam a chamada Trindade com a Mulher-Maravilha, a dos três mais icónicos e duradouros personagens da editora. E a essa Trindade juntaram-se duas cartas fora do baralho na forma do Flash e do Lanterna Verde, também eles ícones, mas a uma dimensão inferior à dos outros três: dois amigos que, como acontece na dinâmica de qualquer grupo, acabaram naturalmente por formar o seu próprio sub-grupo. Dois homens a toda a linha diferentes, com personalidades contrastantes, poderes dissonantes e mundos em nada relacionados um com o outro. Mas, ao passo que o Super-Homem e o Batman são amigos quase por obrigação, como se o seu estatuto de maiores entre os seus iguais a isso os obrigasse (“Os teus dois heróis favoritos juntos numa aventura!”, já dizia World’s Finest Comics #71 aquando do segundo encontro entre o Homem de Aço e o Cavaleiro das Trevas), a amizade entre o Corredor Carmesim e o Gladiador Esmeralda desabrochou de forma orgânica e natural ao longo das décadas. Não é, aliás, por acaso que, logo no primeiro volume desta colecção, quando os restantes membros da Liga da Justiça ainda nem sequer se conheciam, já o Flash e o Lanterna Verde dão mostras de grande cumplicidade e revelam ter já vivido algumas aventuras juntos. São o Palhaço Branco e o Palhaço Augusto, o Polícia Bom e o Polícia Mau, o indivíduo fiável que não é divertido em festas e a alma da festa na qual não se pode confiar. São dois heróis que souberam dar os empurrões necessários à DC Comics quando a Trindade não pôde valer à editora, tal como o Flash o fez ao ser o arauto da Era da Prata e o Lanterna Verde o fez com uma série de importantes sagas de extraordinário sucesso no final da primeira década do novo milénio. São o Audaz e o Destemido, e esta é a história da sua amizade única, que os Novos 52 ressuscitaram para os tempos modernos e cujo legado este volume homenageia.