Stan Lee em tempos disse que nunca se deve dar aos fãs aquilo que eles julgam que querem, mas sim aquilo que eles realmente querem. Uma vez que os autores são também eles fãs, esse aforismo pode ter dois significados no que à relação (ou à inexistência da mesma) entre o Super-Homem e a Mulher-Maravilha diz respeito, visto que a DC brincou com a noção dessa parelha durante décadas, sem nunca a concretizar verdadeiramente na continuidade oficial. Afinal, muitos julgavam que, à primeira vista, o Último Filho de Krypton e a Princesa Amazona pareciam feitos um para o outro — a nível físico, se nada mais — e, de acordo com a asserção de Lee, provavelmente também julgavam que queriam ver os dois juntos, mas o que realmente queriam era que o status quo se mantivesse. E assim foi ao longo de mais de sete décadas, embora o Super-Homem e a Mulher-Maravilha tivessem acabado juntos ou romanticamente envolvidos em inúmeras histórias da chancela Elseworlds, das quais o Kingdom Come de Mark Waid e Alex Ross é talvez o maior exemplo. Houve também entre os dois quase sempre uma clara tensão que alternava entre o abertamente sexual e o bordejar entre a amizade e o romance, tal como evidenciado em World’s Finest #204 (EUA, 1971), em que o Super-Homem confessa abertamente à Mulher-Maravilha que tem vontade de beijar, mas que ambos sabem que ele “não deve”. Ou no seminal Superman Annual #11 (EUA, 1985) de Alan Moore, em que os dois de facto se beijam e concluem em estilo meio jocoso que só não o fazem mais vezes porque seria “demasiado previsível”. Assim, dava-se a alguns fãs o que eles julgavam que queriam enquanto se mantinha intacto o que se julgava que os fãs queriam: que o Super-Homem ficasse com a repórter Lois Lane e que a Mulher-Maravilha se deixasse estar com o coronel Steve Trevor ou permanecesse solteira, como mandava a tradição. Ainda assim, havia uma inegável noção subjacente de que os dois ficavam bem juntos, um pensamento que sempre povoou o imaginário colectivo de forma mais ou menos subtil, como a Mulher-Maravilha ser frequentemente apelidada de “Supermulher” em Portugal, os dois heróis serem tema frequente de cartões do Dia dos Namorados e a existência da velha piada de gosto duvidoso do Super-Homem, a Mulher-Maravilha e o Homem-Invisível. Dito isto, apesar da prevalência dessa noção na cultura pop, e da preferência de um contingente de fãs que sempre existiu, a mera noção de o Super-Homem e a Mulher-Maravilha estarem juntos era quase tabu no cíclico e sempre insular meio dos comics
No entanto, tudo viria a mudar em 2012, já com os Novos 52 em pleno andamento e com a ruptura com o status quo e a tradição a ser uma das palavras de ordem. Não haveria melhor oportunidade que esse contexto para experimentar uma relação a sério entre estes dois ícones e, após Geoff Johns ter estabelecido uma atracção mútua nas páginas de Justice League e assumido os dois como um casal durante as aventuras da Liga da Justiça, a DC Comics lançou o inédito título Superman/Wonder Woman em 2013. Por fim, o Super-Homem e a Mulher-Maravilha eram um casal na continuidade oficial do Universo DC, e poder-se-ia finalmente explorar de forma íntima o contraste dos mundos destes dois personagens, que têm tanto de diferente como de parecido. Algo de que está bem patente neste Par Perfeito, na forma como contrasta o casal super-heróico ao mesmo tempo que os justapõe para evidenciar as suas semelhanças. Isto porque, embora o Super-Homem e a Mulher-Maravilha partilhem aqueles que são os ideais da praxe para qualquer super-herói que se preze (lutar pela justiça, proteger os indefesos, etc.), as suas abordagens são algo diferentes, e os dois regem-se por princípios que não estão propriamente em sintonia um com o outro, na medida em que ele só mata em último recurso e na mais extrema das situações, ao passo que ela não tem qualquer pejo em pôr fim a uma ameaça séria com meios mais drásticos. Para além disso, os dois lidam de forma muito diferente com a sua condição de autênticos deuses entre mortais, com o Super-Homem sempre muito apegado à sua vida pessoal e privada, que escolhe e insiste em viver como um “mero” humano, ao passo que a Mulher-Maravilha apenas vive como Diana Prince por uma questão de conveniência. Há também uma tensão latente devido à dinâmica de poder entre dois dos mais poderosos seres da Terra, uma vez que o Super-Homem insiste em proteger mesmo quem não precisa, ainda que a custo do seu próprio bem-estar, e a Mulher-Maravilha foi criada numa cultura matriarcal e independente. Como tal, a ideia de que os dois são um casal perfeito é algo enganosa, e não há nada de “previsível” na relação entre estes dois verdadeiros ícones dos comics, a não ser a certeza de que se depararão com todo o tipo de adversidades… mas que espécie de adversidade pode representar uma ameaça para os dois mais fortes membros da Liga da Justiça?
Quem tenta responder a essa pergunta é Charles Soule, uma das novas vozes dos comics e um dos mais prolíficos e produtivos argumentistas da actualidade. Soule iniciou-se nas editoras independentes com projectos de sua autoria, evidenciando um talento que levou a que a DC o “pescasse” em 2013, data em que começou a trabalhar nos títulos Swamp Thing e Red Lanterns, dando mostras de talento, versatilidade e uma invulgar capacidade de trabalho (continuou a trabalhar nos seus projectos autoriais e a exercer advocacia enquanto escrevia para a DC), que lhe mereceu nesse mesmo ano a honra de ter a seu cargo dois dos mais importantes personagens da DC em Superman/Wonder Woman. Sem se deixar intimidar pela enormidade de tal empreitada, Soule pegou nos universos de ambos os personagens e elaborou com eles uma ameaça conjunta para o Par Perfeito, fazendo uso da família divina da Mulher-Maravilha e das ameaças da Zona Fantasma, onde alguns dos mais terríveis inimigos do Super-Homem estão aprisionados. Com esses ingredientes, conseguiu tecer uma quintessencial história de super-heróis, acrescentando-lhe ainda a vertente romântica de uma relação adulta e convincente entre dois ícones, e o facto de ter logrado reinterpretar alguns dos elementos mais excêntricos da Mulher-Maravilha pelo caminho (o avião invisível e o raio púrpura, bem como um vislumbre do vilão Homem Angular), sem com isso comprometer o enredo, é prova do talento de Soule. No departamento da arte, temos um artista à altura de tão destacado projecto: Tony S. Daniel — para alguns, o herdeiro ao trono de Jim Lee —, artista de provas dadas, que já demonstrara as suas capacidades em Detective Comics, Action Comics e Justice League. E seria remisso não referir o quão bem as cores do espanhol Tomeu Morey complementam o traço de Daniel, elevando-o a outro nível e assegurando um dos livros mais vistosos desta colecção.
Em conclusão, ver o Super-Homem e a Mulher-Maravilha juntos não será certamente o que muitos leitores querem, tal como Charles Soule o explora num comentário quase meta-narrativo no interlúdio desta história, em que dá voz tanto aos apoiantes como aos detractores desta parelha (e onde vemos mesmo Tintim e Milu a manifestarem a sua surpresa). O peso e a memória das suas anteriores relações ainda está muito presente, e demasiado entranhado para que uma relação romântica entre os dois fosse facilmente aceite. Mas, quem sabe, após lerem Par Perfeito, mesmo o mais purista dos fãs poderá talvez ser levado a julgar que o quer…