(Nota: esta não é a segunda parte do Da Cabeça Para o Papel. É apenas uma entrada intermediária acerca da inspiração visual, porque recebi uma série de perguntas acerca disso mesmo nestas sessões da Feira do Livro. E, já que falo da dita, obrigado uma vez mais a quem se deu ao trabalho de lá ir e alancar livros, e a quem se deu ao trabalho de lá ir só para se apresentar e/ou trocar umas impressões. As feiras literárias fazem-se de bons bocados como os que por lá se passaram.)
Para escrever, é preciso ter imaginação, obviamente. Pelo menos, convém. E, para escrever fantasia, ter imaginação é daquelas coisas que dão bastante jeito, ao ponto de ser praticamente imprescindível. Mas isso não significa necessariamente que se crie tudo ex nihilo. No meu caso, por exemplo, já estou embrenhado em Allaryia desde os 12 anos de idade, e tenho marcadores e imagens gravadas que são mais velhos que alguns primos meus. Referências visuais, algumas auditivas, e até alguns vídeos, tudo isso foi sendo acumulado com o passar dos anos, com uma ideia mais ou menos definida de quando faria uso delas, e muitas ainda ficaram por usar. E essas foram apenas as classificadas, ou aquelas que se aproximavam mais da semente de um conceito que eu pudesse ter tido. Nunca resisti a uma paisagem bonita ou a uma armadura bem ornada, por exemplo, e fui sempre guardando coisas com o espírito de as usar mais tarde… ao ponto de muitas vezes ser surpreendido com esta ou aquela pérola visual de que já nem me lembrava, do género: “Ah, olha, a máscara de janízaro amolgada que me fazia lembrar a do Ignoto que teve a cara moída ao murro por aquele Ajuramentado quando o Mandatário Vealdar atacou os magocratas”.
Muitas vezes, o que acontece é que tenho uma personagem imaginada, e ela fica provisoriamente com a cara de um actor, modelo, figura pública ou indivíduo com o qual certa vez me cruzei. Por vezes, fica até uma amálgama indefinida de traços gerais, que mesmo na minha cabeça apenas “vejo” como se estivesse a espreitá-la pela visão periférica, e frequentemente isso é quanto basta, sobretudo para personagens secundárias ou com pouco protagonismo. Outras, vou aperfeiçoando essa primeira impressão geral, o que pode ser um trabalho de anos até a personagem finalmente aparecer na história.
A saudosa Linsha, por exemplo, era das tais amálgamas indefinidas – “cabelo curto preto, olhos felinos castanhos, pálida, boca petulante, má rês” – que apenas serviam para fazer um mau retrato-robô e juízos de valor acerca do seu carácter. Mas, com o passar dos anos, foi ganhando forma e tornou-se mais nítida. Primeiro, com uma carta de Magic que certa vez vi ao folhear a colecção de um amigo (Darkpact, se não me engano) e, mais tarde, após uma busca num sítio de noivas bielorrussas por encomenda, uma vez que os nomes tanarchianos são sobretudo baseados no bielorusso. E não, não me inscrevi nem mandei vir bielorussa alguma, embora o sítio me afiançasse com aquelas letras garridas e animadas de páginas dos anos 90 que estavam todas desejosas por me conhecer e que uma delas seria certamente a minha alma gémea. Mas o meu irmão casou-se com uma, o que apenas vem a comprovar que a realidade consegue realmente ser mais estranha que a ficção, mesmo a mais fantasiosa (olá, Natasha!).
Quando se trata de monstros e bicharada, isso já não se verifica tanto, curiosamente. Com esses, dou-me de facto ao trabalho de os ter bem definidos logo desde o início. Alguns desenhei, outros ficaram estabelecidos mas a maturar na cabeça com o andar da história, e outros foram o resultado de uma colecção de imagens que acabou por me servir como as peças de um puzzle para eu criar a bicheza. Os azigoth foram muito assim, por exemplo, uma amálgama de quitina, asas, tenazes, telsos e palpos de todo o tipo de insectos possíveis e imaginários; no caso dos divaroth, tenho uma pasta que me faria passar por ornitólogo; e a dos enigmáticos uman ou mete nojo, ou dá vontade de rolar os tentáculos em pão ralado, fritá-los e servir com limão numa esplanada em Setúbal.
De resto, a parte com a qual de longe preciso de mais ajuda é mesmo a arquitectónica. Não venho visão nem sensibilidade para imóveis, e preciso de imenso tempo a preparar o cenário sempre que uma cena ou capítulo decorre em interiores, cidades, ou mesmo a mais simples das aldeolas. O meu pai até foi engenheiro civil e teve formação em arquitectura, mas o tipo de edifícios com que preciso de ajuda vão um pouco para lá da zona de conforto dele. Por isso, essa parte sempre foi das mais morosas para mim, e não raras vezes fiquei com um capítulo empatado só porque não atinava com uma fachada. Mas aprendi muito, não só a nível visual, como também de vocabulário, razão pela qual o RCPalavras desta semana dirá respeito à arquitectura.
E assim se processam as referências visuais em Allaryia e mundos que tais. Espero que tenha complementado bem o que disse a quem mo perguntou na feira, e que esclareça quem nunca mo tenha perguntado. Se gostarem de saber algo mais, ou tiverem ideias para mais entradas deste género, partilhem-nas comigo por e-mail ou nos comentários em baixo.