Sempre me disseram que era perigoso tomar banho (praia, piscina ou duche) durante a digestão, ao ponto de uma vez um colega meu ter tido um ataque de choro quando foi empurrado para a água por um amigo após o almoço. Já adulto, percebi que isso era um mito. Tive uma infância inocente, em que acreditava no Ratinho dos Dentes, até ser gozado em plena turma após contar o que me tinha acontecido nas férias, e um colega mais apiedado me explicar que eram os meus pais quem me deixava o dinheiro debaixo da almofada. E boa parte da minha vida achei que tectos eram superfícies que formam a parte superior das habitações, e que tetos eram a forma burgessa como nos referíamos aos seios das nossas colegas de escola. Cresci a usar ambos de forma bem distinta, até que, certo dia, já adulto, começaram a soar as pontadas de uma contagem decrescente após a qual tetos poderia ou não fazer-me passar por burgesso, e tectos me mereceria possivelmente a classificação de retrógrado.
É uma coisa estranha, este Acordo Ortográfico. 29 anos após ter sido assinado, restam ainda dois países no mundo lusófono que ainda não aderiram, e os restantes parecem não saber bem o que fazer com ele e qual o seu propósito. Eu próprio confesso que não acompanhei de perto o processo inicialmente e ainda hoje me questiono quanto ao porquê. Foi o Ministério dos Negócios Estrangeiros que se sentiu atraído pelos reais do mercado editorial brasileiro? O Ministério da Educação e Cultura que achou que o haver factos e fatos era um impedimento à aprendizagem do português da parte de estrangeiros? A Academia das Ciências de Lisboa que achou inaceitável o haver duas ortografias distintas para o português, certamente assustada com os efeitos deletérios que isso teve para a língua mais falada do mundo, o inglês?
Estou certo de que tudo isto já foi amplamente discutido por quem de direito e ignorado por quem de torto, mas a sério que continuo sem perceber. O Regras que ensinam a maneira de escrever a orthographia da língua portuguesa, de Pêro de Magalhães Gândavo, procurava aproximar mais o português do latim, numa abordagem dita civilizadora e edificante das gentes. Em sentido inverso, as tentativas de reformas ortográficas (que culminaram na de 1911) visavam afastar o português dos étimos latinos e gregos, o que resultou em Portugal com uma ortografia reformada e o Brasil a manter a ortografia de base etimológica. Mais tarde, foram sendo promulgadas alterações em ambos os países, para reduzir as divergências ortográficas entre os dois, o que veio a desaguar no Acordo Ortográfico como hoje o conhecemos, um tratado convencional que nos trouxe pérolas como o caso da palavra receptor, que mais parece um jogo das cadeiras ortográfico. Basicamente, como sempre o faz, o pensamento académico pós-modernista propôs-se a resolver um problema que não existia, criou um que escusava de existir, e apenas existe porque se escusa a criar, limitando-se a distorcer (ou, vá, reinterpretar).
A nível profissional, o Acordo não mudou a minha forma de escrever nem de traduzir. A Presença aderiu e, após sucessivas operações de charme, lá me persuadiu a ter subsequentes edições dos meus livros na nova grafia, porque Plano Nacional de Leitura e tal e coiso. No entanto, com os meus manuscritos, fui só mesquinho e decidi dar mais trabalho aos revisores, entregando livros escritos “como deve ser” e deixando para outros o trabalho de eliminar consoantes mudas ou andar à caça de hífenes. Mesmo os meus correctores ortográficos continuam a ser das variantes pré-AO (desde já, o meu obrigado aos beneméritos que os mantém). Já no caso da tradução, tenho-me fiado na minha capacidade de retenção de vocábulos para não me enganar com apocalíticos, heroicos e com o imperativo do verbo parar, mas também tenho instalada uma extensão para me certificar de que segue tudo nos conformes.
Em suma, tal como na questão das redes sociais, trabalho com um handicap só porque me oponho a algo. Algo que tenho esperança que venha a deixar de existir. Pode parecer pedante, mas tem a vantagem de manter a minha grafia consistente, ao contrário de muitos que, tal como eu, cresceram a escrever de uma certa forma, mas, ao contrário de mim, procuraram adoptar a nova e acabaram por criar uma terceira, em que usam elementos de ambas em comunicações do dia-a-dia. Quem sabe, daqui a alguns anos, talvez venha a ser essa a forma orgânica como a grafia do português acaba por evoluir – não por imposição, mas pela natural adopção dos falantes e escreventes.