Mesmo para quem gosta e está habituado, escrever livros não é algo a que se possa chamar fácil. Há tanta coisa a ter em conta só para tecer um enredo e desenvolver personagens, que seria de esperar que um autor não complicasse mais ainda a coisa. No entanto, da mesma forma que torno as coisas mais difíceis para mim de forma consciente, recusando-me a aderir às redes sociais, também o faço na construção de mundos, perdendo tempo em minúcias nas quais dificilmente alguém reparará. E nem me refiro ao tipo de pormenores que, mesmo passando despercebidos, dão corpo e verosimilhança ao mundo, mas coisas tão irrisórias como: em Allaryia não há laranjas.
Como é do conhecimento comum e está patente nas descrições e na estética que o reveste, o mundo de Allaryia é baseado na Europa da Idade Média. Uma Europa de dimensões bem mais alargadas, com uma Transcaucásia mal-amanhada povoada por um povo tirante aos chuvaches, mas em tudo o mais semelhante ao passado do Velho Continente. Só com uma diferença: ao contrário de outros mundos de fantasia, não existem outros continentes distantes. Como tal, não há especiarias, frutos tropicais, animais exóticos, ou tecidos finos, o que, parecendo que não, tem um grande impacto nas descrições.
É algo que dá trabalho, e compreendo perfeitamente porque mais ninguém (acho) o faz. O mais normal é ver mundos medievais de fantasia com milheirais, abóboras, vestidos de seda, leões, tabaco, algodão, e tantas mais coisas que tomamos como dados adquiridos. Afinal, há sempre a desculpa do “ai, e tal, é fantasia”, ou há terras distantes a que se alude, e a verdade é que, ainda que não originárias, muitas espécies de legumes e frutas exóticas podem crescer no clima europeu. Também dá sempre para imaginar que uma placa tectónica mais exótica colidiu com fantasiópolis em tempos idos. E, claro, há também a magia.
Mas não, em Allaryia não. E só ao escrever o Felizes Viveram Uma Vez, esse sim baseado num mundo com bases no nosso, é que me dei conta da real carga de trabalhos que isso me deu ao longo dos anos. Como se isso não bastasse, ainda por cima nem sempre o fiz bem, como o atesta um certo leão da montanha e uns quantos crocodilos n’A Manopla – para não falar de inúmeros detalhes que certamente me terão escapado. Porquê fazê-lo, então? Porquê dar-me a tal trabalho, quando podia estar a concentrar-me em algo efectivamente relevante para a história?
Antes de mais, porque posso, obviamente. Porque sou purista e preciosista. Porque tenho um peculiar instinto de dificultar as coisas por questões de princípio ou hábito, como quando faço ponto de honra de não usar os navegadores recomendados para algumas das ferramentas de trabalho de tradução que utilizo. E porque, espero, tal como os pormenores que passam despercebidos mas nem por isso deixam de dar corpo e verosimilhança a mundos criados, este tipo de particularidade e consistência internas tornam o mundo de Allaryia mais meu. Porque, mais ainda que a história, as personagens e as ideias – que nunca poderiam ser do agrado de todos, nem consensuais – pode-se dizer que aquilo que torna as Crónicas algo mais que apenas mais uma saga de fantasia nas prateleiras é o facto de lá não haver laranjas. E isso ninguém me tira.