Seria mentira dizer que a escrita sempre esteve no meu sangue, mas os primeiros sinais começaram a manifestar-se muito cedo, nas composições que escrevia com gosto na escola. Isto apesar de um início muito pouco auspicioso, pois, de acordo com a minha mãe – juro que não me lembro – a primeira composição que nos mandaram escrever na primária foi “A Minha Viagem a Trás-os-Montes”, após termos lido um qualquer texto sobre ou baseado na região, imagino eu. E que sinal dei eu de que aquele puto desdentado iria um dia ser um autor publicado, com doze livros até à data e mais de quatro mil páginas escritas? Eu nunca fui a Trás-os-Montes.
Como disse, não me lembro, mas tem piada, por isso digamos que aconteceu. O que é certo é que sempre gostei bastante de escrever composições, altura em que dava largas à imaginação, mas, curiosamente, nunca o fazia em casa. A menos que houvesse um TPC que a isso obrigasse, nunca pegava numa caneta e numa folha de papel para dar largas à imaginação através da escrita. Imaginava histórias, sim, sobretudo de noite, e às vezes até as ensaiava com o meu irmão em brincadeiras, mas nunca as escrevia. Afinal, eram só devaneios.
Tudo mudou certo verão, um dos muitos que passei em casa da minha avó, que mereceria toda uma outra entrada só para falar dela. Havia lá uma máquina de escrever electrónica, uma sólida e pesadona IBM com a qual eu já antes brincara, mas nunca para mais do que escrever uns palavrões, pressionar a mesma tecla repetidas vezes no mesmo lugar, ou divertir-me com os cliques, zumbidos e afins ruídos que ela produzia ao trabalhar. Certa semana deu-se a coincidência de eu ver um episódio do McGyver (Ghost Ship), em que se falava muito do Pé-Grande, e ler uma história da Tropa Alfa com o herói Sasquatch (para quem isto significa algo, sim, sou fã dos heróis da DC, mas também li muita Marvel no passado).
Ora, de alguma forma, o raio do bicho intrigou-me o suficiente para eu querer mais histórias com ele. Mas não havia mais Tropa Alfa no quiosque, o episódio seguinte do McGyver já não tinha criaturas criptozoológicas, e nunca me passaria pela cabeça ir à procura de livros sobre o Pé-Grande, porque ler livros nem pensar. Por isso, sentei-me diante da máquina de escrever e comecei a debitar uma história em que o Pé-Grande protegia uma qualquer moça campista que inicialmente se sentia aterrorizada, depois ambos eram capturados e levados num avião, em que o Pé-Grande se libertava com a ajuda da menina e os dois causavam uma queda de avião à qual sobreviviam miraculosamente, só para serem subsequentemente caçados e o bicho limpar o sebo a todos os mauzões. Fim. Escrevi, mostrei à minha avó, que achou “giro”, mostrei aos meus pais, que acharam que tinha “muita porrada”, e deitei-a fora.
Mas foi o princípio de toda uma série de contos descartáveis que fui escrevendo, muitas folhas de papel deitadas fora, muitos rolos de tinta para máquina de escrever comprados pela minha avó, e, mais importante ainda, da minha tomada de consciência de que, se não havia à mão o tipo de histórias que queria, podia eu criá-las. E foi precisamente essa a força motriz que, anos mais tarde, me impeliu a criar o meu próprio mundo de fantasia após ler O Senhor dos Anéis, e o resto é história.
Aquilo que motivou esta entrada foi um ataque de nostalgia este fim-de-semana, que me levou a procurar a velha máquina, soterrada numa autêntica babilónia de relíquias familiares e afins velharias. Estava muito mal tratada, mas ainda tinha os autocolantes dos Cheerios da minha infância, e as teclas ainda apresentavam o tipo de resistência que quase nos convida a darmos largas aos dedos e imaginação. Vou agora limpá-la, guardá-la em lugar de destaque e estimá-la, não só como recordação da minha avó, mas também a título de lembrança de que grandes sonhos têm mesmo inícios humildes.
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