Plágio e deságio

No início, foram as comparações entre as Crónicas e Dragonlance, porque havia um caganito que se picava com um anão. Mais tarde, as admonições para não publicar o Felizes Viveram Uma Vez, porque estava o Once Upon a Time a passar na televisão. Ocasionalmente, havia uma ou outra sessão de D&D, em que alguém se lembrava de uma série ou filme parecida com a situação que estava a decorrer à mesa. Mais recentemente, na Comic Con, foram as conversas que tive com artistas e leitores, que grosso modo decorreram assim:

“Eh, pá, não podes fazer isso, porque no Guerra dos Tronos a gaja desce a uma cave e vê lá uma caveira de dragão.”

“Deixei a ideia do sacerdote com a máscara de madeira, porque a minha mulher disse que lhe lembrava o Barba-de-Árvore.”

“É melhor não, porque também existe um jogo de tabuleiro um comic em que zombies são causados pela peste negra.”

“Eu disse-lhe que a relação dos dois era, tipo, Darth Vader e Imperador, mas ele não quis saber.”

“Três gatos samurais faz lembrar um bocado quatro tartarugas ninja, não…?”

E assim por diante. É uma era curiosa, esta em que vivemos. A democratização do acesso ao entretenimento e da comunicação em massa permite ao público leitor (e aos próprios escritores) uma noção sem precedentes do que já se fez, do que há lá fora, e do que está por ser feito. É óptimo para o leitor poder tomar decisões informadas e, acima de tudo, poder ler o que verdadeiramente lhe interessa. Quanto a isso, nada a apontar. Eu próprio tiro partido disso enquanto leitor.

O problema é o reverso da medalha, que resulta num enfado literário e num esmaecimento da capacidade de desfrutar do entretenimento. Quando os nossos sentidos são estimulados em excesso, vai-se perdendo a sensibilidade gradualmente, até se chegar ao ponto em que apenas o mais esdrúxulo dos estímulos ainda nos permite apreciar algo. E o ter acesso a mais estímulos ou informação que o que somos capazes de processar pode também levar-nos a fazer-nos passar por entendidos na matéria (vide qualquer pessoa que lê a Wikipédia) e a sentirmos necessidade de mostrar que já vimos algo semelhante. E não, nem mesmo a idade e a experiência servem como desculpa. Conheço gente bem mais velha que eu, que já se esqueceu de mais livros que aqueles que eu já li, mas que nem por isso perderam essa capacidade quase pueril de encontrarem sempre algo de que desfrutar num livro, filme ou jogo. A menos que o produto seja francamente mau, escusado será dizer.

Como é óbvio, não quero com isto dizer que paralelismos óbvios e plágio é algo que não existe. Ou que não me poderiam acusar disso mesmo se, um dia, eu decidisse escrever uma história em que uma fêmea de uma raça diminuta com um brinco que a torna invisível e atrai uns cavaleiros chamados Gaznûl se junta a um grupo de várias raças para ir destruir o seu berloque no vulcão de Dormor. Nem que os leitores não devem ter padrões exigentes, e que devem comer e calar e mostrar-se agradecidos  sempre que um iluminado os agracia com um livro. Longe disso.

Não. O que com isto quero dizer é que, ainda que haja muitos sítios a servir bife com batatas fritas, e agora tenhamos restaurantes mais in com cozinha de fusão japonesa e peruana, churrasqueiras de carne maturada e afins exotismos epicuristas, não é por isso que devemos deixar de saber apreciar um bom bife com batatas fritas. E que, ainda que dois restaurantes diferentes possam servir o mesmo bitoque, isso não significa que os sabores e a experiência sejam iguais. Eu também fico fascinado por novas ideias, e tenho curiosidade em ler um livro de fantasia que mistura mitologia nativo-americana e uma civilização pseudo-babilónica, mas não é por isso que já não sei apreciar uma boa história em que um grupo de aventureiros se conhecem numa taberna e acabam numa demanda para salvar o mundo.

Acima de tudo, autores não se devem sentir restringidos pelo que já foi feito, ou descartar ideias só porque já viram algo parecido. A menos que queiramos a todo o custo fazer história, o importante não é sermos pioneiros, mas sim contarmos a história que queremos contar e a melhor história que conseguirmos contar. Porque tudo faz parte da grande narrativa humana desta nossa consciência colectiva, e o que é hoje velho acabará por se tornar novo antes de envelhecer novamente, e assim por diante.