Tudo começou com O Senhor dos Anéis, que não só espoletou em mim uma vontade de criar, como também deu origem a uma fome insaciável de ler mais fantasia e de me embrenhar em mundos fantásticos. Na minha escola, jogava-se Magic, e eu quase só coleccionava as cartas pela arte e pelos fragmentos de história que estas contavam, mas isso sabia-me a pouco, e o mundo de Allaryia ainda estava demasiado fragmentado e indefinido na minha cabeça para me satisfazer plenamente. Como tal, foi numa livraria com livros importados de Dungeons & Dragons que eu encontrei forma de ir saciando essa minha ânsia. Não me importava sequer que a qualidade deles não se comparasse à escrita e cosmogonia de Tolkien; bastava-me que a capa fosse apelativa, que a história tivesse boas cenas de acção e que me enchesse o bandulho de fantasia. Mas tudo mudou quando, certo dia, ousei levantar um pouco mais a cabeça e pedir para ver uma certa e chamativa caixa amarela que estava no cimo da prateleira da livraria.
Em retrospectiva, e falando estritamente de uma relação custo/desfrutação, esta caixa foi, de longe, o melhor investimento da minha vida. Estamos a falar de milhares de horas de entretenimento, diversão e boas memórias que cunharam amizades e se tornaram em piadas privadas que ainda hoje fazem rir muita boa gente. Não só isso, deu-me ideias, inspiração e elã para escrever, motivo pelo qual muitos já disseram com toda a razão que A Manopla de Karasthan lhes faz lembrar uma sessão de D&D.
Além dos dados, figuras, fichas de personagem e ecrã do mestre de jogo, a caixa contêm um livro para os jogadores criarem personagens e aprenderem as regras, outro para o mestre de jogo saber como gerir uma aventura, um terceiro com bicharada para os jogadores interagirem, e um último com indícios de regras mais avançadas e todo um outro nível de aventuras, para aliciar mentes jovens e sugestivas a darem o salto para os livros «a sério». Livros esses que ainda levei uns bons anos a comprar, de tão embrenhado e fascinado que fiquei só com o básico, com o qual desfrutei de dúzias e dúzias de sessões mágicas com dez jogadores bem diferentes. Nem todos gostavam necessariamente de fantasia, mas todos ficaram no mínimo intrigados com aquele misto de teatro, jogo de dados e cálculos desnecessariamente convolutos para perceber se dava ou não para atingir um adversário especificamente na virilha.
Com tanta inspiração e diversão, era inevitável que algo ressumbrasse para a minha escrita, e assim foi. Desde a dinâmica de todo o início d’A Manopla de Karasthan, em que os combates com monstros (e não só) se seguem em rápida sucessão, houve também outros elementos das sessões de D&D e das descrições dos livros que me influenciaram. Por exemplo, para quem estiver lembrado da infame cena em que Hazabel dá à luz a sua prole, todo o conceito foi influenciado por um comentário na descrição da ecologia das bruxas no acima referido livro de bicharada, em que se diz que, segundo as lendas, as bruxas trocam os seus bebés em gestação com os de mulheres grávidas, que são depois por eles devoradas. Teria sido esse o destino da filha de um dos meus jogadores, mas, sorte a dele, deixou de jogar antes que a história chegasse a esse ponto.
Quanto ao tal livro com outro nível de aventuras, a capa dele sempre foi a minha favorita do conjunto, e podia ter sido bem mais influente no visual das Crónicas, se a história não tivesse acabado por crescer organicamente. O pequenote à esquerda foi, obviamente, a principal inspiração visual para o Taislin, e o motivo pelo qual ele tradicionalmente usou um barrete vermelho. «Taislin» foi também o nome de uma personagem recorrente nas sessões, um ocasional aliado e persistente empecilho para os jogadores, que se viam frequentemente aliviados das suas posses por ele.
A menina ao meio podia ter sido uma sacerdotisa de Acquon que teria acompanhado os companheiros nas suas aventuras, mas acabou substituída pela Slayra e viu o seu papel na história ingloriamente tomado por um mero acólito. Não posso dizer que a menina à direita tenha sido a inspiração para a Lhiannah. Mas a verdade é que esta última tem uma espada delgada e sempre tendeu a usar vermelho…
E, claro, seria remisso não referir Silverleaf Halfmoon, a inspiração original para o visual do Quenestil, duas penas e tons ocre incluídos. Esta ficha de personagem em particular foi usada como base para o meu primeiro jogador, que gostou do que viu mas preferiu usar outra arma que não o cajado, quis ser meio-elfo e insistiu em criar o seu próprio nome. E assim nasceu Tanis Teethripper, o meio-elfo sociopata que gostava de arrancar os dentes dos inimigos, que coleccionava num colar e que listava minuciosamente na sua ficha de personagem. O Quenestil ficou-se por um só dente, como é sabido. De referir também que «Anthalos», o apelido do Quenestil, nasceu bem mais tarde e foi usado por um outro jogador, um bardo élfico (sem parentesco).
Nos dias que correm, é muito difícil conseguir organizar um grupo para jogar com alguma regularidade, mas ainda tenho a minha vasta colecção de livros e acessórios sempre pronta a entrar em acção. E, mesmo que nunca mais jogue, D&D já me deu inspiração a suficiente para toda uma vida, e as memórias que guardo das saudosas sessões no secundário, na faculdade e em parte da idade adulta não têm preço.