Como leitores de longa data do blogue talvez se recordem, a Islândia ocupa um lugar especial no meu coração. Foi lá que escrevi o Vagas de Fogo e onde fiz extensa e diligente pesquisa para A Alvorada dos Deuses. Não só isso, é lá que tenho a minha segunda família – os meus vikings – e considero o país a minha segunda e mais cara casa.
Mas, em 2003, ano em que primeiro lá fui, a Islândia não passava de uma ilha estéril povoada por esquimós. Na minha cabeça, pelo menos. Era só uma aventura, algo a que me convenci a fazer só para sair do marasmo da encruzilhada em que a minha vida então se encontrava. Afinal, se um homem não consegue encontrar propósito sequer no fim do mundo, que esperança há para ele no mundo propriamente dito?
Para contextualizar, quando falo em «encruzilhada», refiro-me àquela altura estranha da minha vida em que estava a escrever e ganhar bem com livros, a fazer a ocasional tradução, e a estudar para – achava eu – poder vir a ser tradutor. Porque havia que ser responsável e ter um canudo e ter um trabalho a sério, porque… bem, porque era a coisa a fazer.
Mas, à parte as amizades que fiz e que ainda hoje duram, a vida universitária – enquanto extensão mais liberal do regime lectivo da escola – não se coadunava comigo. Como dizia a mim mesmo na altura, já não queria estudar, queria aprender. E, revelando-me sem pudor como o jovem privilegiado a queixar-se de barriga cheia que eu na altura era, a situação começava a causar-me uma certa medida de angústia existencial.
Como tal, a completamente arbitrária decisão de ir espairecer uns tempos na Islândia não me pareceu tão descabida assim. E escusado será dizer que não, apesar de ser conhecida como a Terra do Gelo e do Fogo, não é uma ilha estéril (apesar de apenas 1.2% do seu solo ser arável), e a sua população não consiste de esquimós (eu era jovem e ignorante e só conhecia a Björk; não me julguem). Tal como o descrevi no diário em que registei a minha viagem:
Já da janela, enquanto o avião mergulhava no mar de densas nuvens, senti de imediato que entrava noutro mundo. Uma série de baías entrecortadas e escarpadas, planuras rochosas com primordiais tons de azul, verde e toda a miríade de cores pelo meio; esta é uma terra jovem, ainda em processo de nascimento segundo os padrões do nosso Velho Continente. A ausência de árvores salta de imediato à vista, pois onde quer que se olhe só se vê uma extensão de resistentes ervas boas para pouco mais além de pastar
A minha estadia com aquela que mais tarde se veio a tornar na minha família islandesa foi algo que excedeu as minhas expectativas. Não só consta que me tornei mais sociável – forçado que fui a expor-me, para não me tornar num eremita deprimido a viver numa cave alheia – como literal e figurativamente expandi os meus horizontes, ganhei mais inspiração em três meses do que em três anos inteiros, e, após subsistir durante noventa dias exclusivamente através da escrita (antes da crise de 2008, a Islândia era cara que doía), percebi o que queria fazer.
Ia arranjar forma de viver só dos livros. Ou, pelo menos, teria esse propósito a almejar. Um desiderato no qual me focar e que tanto mais evidente se tornou após viver numa terra em que todos os artistas são pintores e carpinteiros, escritores e carteiros, ou escultores e canalizadores. E não se tratava de profissionais que por acaso escrevem; eram artistas que faziam pela vida, e faziam-no como modo de vida. Imagino que isto não seja único à Islândia, mas, num país em que as listas telefónicas parecem dicionários mitológicos e podemos travar amizade com um ex-sumo sacerdote pagão no café da biblioteca, tudo ganhou uma outra dimensão que o tornou mais claro e evidente aos meus olhos. Citando-me novamente:
Findos estes três meses, sinto-me revigorado pelo ar puro e a água cristalina, temperado pelos ásperos contrastes escandinavos, fortalecido pelo clima agreste e pelo leite coalhado e óleo de fígado de bacalhau, maravilhado com as paisagens castas, enriquecido pelo contacto íntimo e próximo com uma gente tão única e sob tantos aspectos barbárica. Um dos lugares-comuns das desculpas para viagens é o clássico «vou descobrir-me a mim mesmo», que, embora seja foleiro ao extremo, fica sempre bem dizer antes de uma jornada.
Pois bem, a verdade é que não o esperava, mas aconteceu: de certa forma, descobri-me a mim mesmo… ou, pelo menos, descobri certas coisas das quais não estava ciente e que requererão uma longa reflexão posterior quando tudo tiver voltado ao normal.