Tal como sucedeu na primeira vaga, tenho sido muito pouco produtivo. Pelo menos com as coisas que «devia» fazer. O que é um contra-senso, uma vez que tempo é coisa que não falta agora.
Não me entendam mal, tenho sido um adulto responsável e feito o meu trabalho, incluindo umas novas oportunidades profissionais que surgiram. Mas, no que à escrita diz respeito, o segundo volume do Ciclo II de Allaryia ficou parado depois de eu ter começado, o que é no mínimo invulgar. Quase tão invulgar como cair duas vezes no mesmo erro de aproveitar a vaga de uma pandemia para trabalhar na minha epopeia da Legião dos Super-Heróis, em vez de aproveitar para adiantar Os Filhos do Caos, ou até debitar mais umas páginas para o Contos de Malfadadas.
Como tal, sinto que devo justificações. Por ocasião dos projectos da DC em que trabalhei no passado, já tive a oportunidade de dissertar acerca do meu apreço pela Legião dos Super-Heróis, e quem me conhece percebe a pancada, uma vez que se trata de um conceito inextricavelmente ligado ao Super-Homem, o meu super-herói favorito. Mas também fica algo admirado, já que eu não gosto nada de ficção científica, e a minha praia é a fantasia. Que, pelo menos na sua vertente épica, é por norma inerentemente saudosista e/ou ligada ao passado. De onde vem, então, tamanha tara por uma equipa de heróis do século XXX?
Tudo começou com os saudosos formatinhos da Abril Jovem, nos não menos saudosos finais da década de 80 e inícios da de 90. Ainda mal lia, eu, mas já acompanhava histórias e fixava certas frases de painéis específicos (muitas das quais ainda hoje conservo), e fazia a associação visual entre certos títulos e horas bem passadas a perder-me em mundos coloridos e imaginativos. Com o passar dos anos, fui-me tornando faccioso, mas na altura não fazia distinção entre DC e Marvel, e tudo o que vinha à rede era peixe.
Dito isto, as revistas Super-Homem, Super Powers (qualquer padrão é pura coincidência, certamente) e DC 2000 eram para mim uma garantia disso mesmo, em sessões de leitura e releitura em casa de amigos ou em escapadelas sorrateiras para os quartos de filhos de amigos dos meus pais, antes de começar eu próprio a comprá-las e a ir à caça de números antigos em quiosques e alfarrabistas. Lá estava a Legião, umas vezes mais associada ao Super-Homem, outras menos, mas sempre cativante e com um conjunto de idiossincrasias que eu não sabia articular, mas que não deixavam de me encantar. Saltava de história em história, de trás para a frente, se necessário fosse, ou metia-me nela in medias res, consoante os números que conseguia encontrar. E, na altura, era para mim a melhor coisa do mundo.
E de onde vinha esse fascínio? Sinceramente, é difícil dizer. O facto de estarem ligados ao Super-Homem ajudava à festa, mas havia algo na dinâmica dos personagens, no mundo completamente diferente que eles habitavam e nas histórias que, de alguma forma, pareciam mais «sérias» e adultas à minha jovem mente. As mulheres voluptuosas de artistas como Greg Larocque certamente também terão ajudado à festa, não há como o negar, mas a verdade é que, depois disso, passei para outra e não só não tornei a ler nada da Legião ao longo de quase vinte anos, como me tornei um leitor bem mais esporádico de BD de uma forma geral.
Mas fui voltando, ainda que de forma pontual e completamente anacrónica. Fui minando várias fases de várias décadas de vários dos personagens que me tinham cativado a imaginação em criança, invariavelmente com maior ênfase no Super-Homem e na Legião. Fui conhecendo melhor o seu historial e lendo de tudo, do excelente e do mau ao pior de mais de 80 anos de histórias, e tornei-me a modos que bastante versado. Um super diletante, digamos assim.
Ora acontece que muitos fãs de ficção têm um problema. Apegam-se aos personagens que acompanham, desenvolvem um sentimento de propriedade em relação a eles e, por vezes, julgam-se capazes de melhor que o que leram. Eu incluo-me entre esses, razão pela qual há anos que vou elaborando nos tempos livres do meu subconsciente criativo algumas histórias com os meus heróis favoritos. Tenho já delineada uma saga do Super-Homem, mas nunca cheguei a escrever mais do que um número com guião completo dessa saga, ao passo que já escrevi 18 — o equivalente a ano e meio de histórias — da minha epopeia definitiva da Legião dos Super-Heróis. Porquê?
Bom, em primeiro lugar, quem leu os meus livros certamente já percebeu que, até ver, gosto mais de escrever histórias com grupos do que com indivíduos solitários. A diversidade e o conflito de perspectivas ajudam-me a impelir o enredo, e as relações interpessoais são das ferramentas a que mais facilmente recorro para lhe dar corpo e textura. Tenho também uma propensão para o épico, e gosto de histórias com fôlego suficiente para o crescimento dos personagens. A Legião permite tudo isso porque, num meio tradicionalmente estático e imutável como o da BD de super-heróis americana, sempre foi um grupo ao qual era permitido crescer e mudar, pelo simples facto de vir do futuro e de ter o seu cantinho muito próprio do Universo DC.
Mas não só. Quando fui convidado da Comic Con 2015, tive a ocasião de privar com Brian Azzarello, um argumentista cujo trabalho e estilo sempre apreciei, e partilhei com ele todas as minhas presunções e aspirações ao longo de um opíparo jantar. Ele deu-me um conselho bastante óbvio, mas que nunca me tinha passado pela cabeça: se um dia realmente trabalhares para a DC, a menos que sejas já uma superestrela, eles não te vão dar logo as chaves do Ferrari. Mostra-lhes antes que estás disposto a guiar o Dodge com um sorriso e a fazer com ele o melhor que consegues.
E assim estou a fazer. A preparar-me para guiar o Dodge como esse chaço nunca antes foi guiado. Não deixa de ser ridículo, porque se trata de um projecto sem concretização à vista, e o tempo que estou a investir nele seria muito mais bem gasto com as minhas criações que, ao contrário da minha Legião dos Super-Heróis, têm efectivamente gente à espera que eu as acabe. Mas, como já por várias vezes o disse, a musa é volúvel e voluntariosa, e quando assim o é, mais vale agarrar-me à sela, deixar que ela me leve onde bem entender e tentar tirar o melhor proveito possível disso.
O mais certo é ser algo que tenha só de sair do meu sistema, um pouco como os meus ciclos de interesse intermitente pela DC, por isso bem que lhe posso dar uso. Há-de passar em breve, o projecto vai voltar para a gaveta, e eu vou concluir Os Filhos do Caos ainda a tempo de sair este ano. Ainda assim, não deixa de ser curioso que, em vez de aprender com o passado, eu teime em regressar a uma história do futuro enquanto lido com esta situação do presente que nos veio atrapalhar a vida a todos…
Agora, se me permitem o culminar mais geek possível de uma publicação já de si para lá de croma, mesmo para os meus padrões:
Longa Vida à Legião!