Uma questão de metalidade

Tem sido uma fase de adaptação, ultimamente, com muitos ajustes e mudanças. Como não me tenho cansado de o dizer, ao ponto de talvez começar a ser repetitivo (prometo que tão cedo não torno a falar disto). Muitas coisas deixaram de ser como eram, mas outras parece que eu julgava apenas que iriam deixar de ser.

Fui ao festival Laurus Nobilis na semana passada. Os cabeças de cartaz foram os Manowar — que, como já antes referi, foram uma banda que me marcou bastante. E estava convencido de que ia ser uma despedida. Não só por eu ter em grande parte já seguido para «outra», mas também porque da banda original já só restam dois membros, e o vocalista fez 70 (!) anos há umas semanas. E um quarentão recém-casado a ir com a sua esposa não-metaleira a um concerto da banda de eleição da sua juventude reúne, só por si, os ingredientes para uma despedida — quase um rito de passagem. É uma história que praticamente se escreve sozinha.

E escreveu-se, de facto. Mas não da forma que se esperava.

O que talvez se esperasse seria um concerto tremendo, um volta-face em que, contra todas as expectativas, a banda parecesse não ter perdido a estaleca, estourasse o palco a mostrar que tinha envelhecido como o vinho e desse uma prova de força para provar que, com os Reis do Metal, não há cá disso de rei morto, rei posto.

Só que não. Houve problemas técnicos, coisa impensável durante um concerto de Manowar. O repertório foi algo desequilibrado a nível de escolha e ordem das músicas. Tocou-se um dos hinos da banda sem a introdução. O vocalista escusou-se a gritar em certas partes e esqueceu-se de um verso. E o novo guitarrista, com toda a boa vontade e diligência do mundo, parece ainda tremer como varas verdes.

Não, o que ali se viu foi um bom concerto (não deixou de o ser) de uma banda que já acusa a sua idade. E podia ter sido uma despedida, como eu já estava preparado — quase mentalizado — para que o fosse, visualizando até as formas como poderia reagir no final.

Mas não. Os lapsos foram encarados de forma jovial pela própria banda. As falhas davam azo a pequenos solilóquios bem-humorados. E a pressão de uma banda ter de actuar na perfeição diante dos fãs deu lugar à comunhão entre velhos conhecidos, aquela em que se ri de alguém que acabou de se estatelar ao comprido enquanto se ajuda essa pessoa a levantar-se.

Já não é bem a mesma coisa, claro. Já não adiciono a minha voz ao coro de mandar o resto do mundo para aquele sítio quando o baixista se lança nas suas arengas contra a imprensa musical e as vozes críticas nas redes sociais, por exemplo. Mas a energia intemporal está lá, bem como o empolgante liricismo das músicas e o virtuosismo de homens que dedicaram as vidas à sua arte e ofício. Cantei, gritei, arrojei o punho ao ar — às vezes até os dois — e deixei-me levar como um adolescente. E, no fim, como o meu sorriso de puto abaixo o dá a entender, percebi que as coisas mudam, sim, mas que podemos continuar a desfrutar delas, se encaixarmos o que mudou e soubermos lidar com isso. Porque, na Terra do Sempre, um septuagenário realmente pode berrar «hail and kill!» em nota alta a plenos pulmões e, de seguida, andar na galhofa com um público que inclui crianças (de ouvidos bem protegidos) em carrinhos de bebé.

P.S. Um bem-haja ao indivíduo de voz estentórea que berrou «Ó sr. Manowar…!» repetidamente até a banda entrar em palco. Fez-me rir.