Eu era um rapaz travesso, não há como o esconder. Não propriamente mal-educado, mas ocasionalmente difícil de controlar. E, por vezes, quem tomava conta de mim tinha de recorrer a medidas extremas para me pôr na linha. A minha tia era uma dessas pessoas, mas nunca teve de se rebaixar a métodos tão reles como açoitar-me com uma vara de marmeleiro ou meter-me pimenta na língua. Não — para ela, bastava recorrer ao Pêssego, e foi remédio santo.
E o que era o Pêssego? Bom, ao longo da minha carreira de autor, já descrevi uns quantos bichos horrendos, mas o terror está muito longe de ser o meu género de eleição, e não me considero particularmente bom a escrevê-lo. Os Filhos do Caos e os Lacrimais no Ciclo II das Crónicas até têm sido bem recebidos, mas continuo a achar que as minhas palavras não conseguiriam fazer justiça ao Pêssego, que — reza a história — é o motivo pelo qual eu ainda hoje sou incapaz de comer o fruto. Por vezes, penso se as minhas descrições dos ditos Filhos do Caos nada mais serão do que uma pálida tentativa de transmitir o pavor atávico com que o Pêssego me infundia, por isso nem vale a pena tentar algo mais do que dar um pouco de contexto.
Tudo começava sempre com um olhar de severa advertência da minha tia quando eu me portava mal, que da primeira vez não funcionou, por motivos óbvios. Quando isso não bastava, ela dirigia-se então à cozinha, para uma prateleira fechada ao lado do exaustor à qual eu nunca tive acesso (nem alguma vez quis ter). A partir de então, eu sabia que já não teria escapatória, que já era tarde para arrependimentos e que já não teria como me safar de uma valente dose de cortisol… porque ele surgiria então na mão da minha tia, qual excrescência tumorosa de puro horror.
Ainda hoje, não sei bem explicar o porquê do medo que tinha deste boneco. Talvez por ter cara de quem, apanhando-me a jeito numa qualquer serra desolada, me faria uma massagem às costas com uma enxada ferrugenta, proferindo impropérios com voz catarrenta pelo trejeito enviesado da boca, antes me dar de comer aos porcos, ainda vivo, enquanto premia com a galocha enlameada a minha cabeça contra a chafurda. Ou então eram os olhos completamente desprovidos de alma, comprimidos em dois pontos de ódio psicótico a todos os seus semelhantes.
Não interessava que fosse apenas um boneco. A minha mente infantil não tinha como não o associar como uma ameaça à minha existência e sanidade. Era o Pêssego, e com ele aprendi a temer. Não aprendi foi a lição, porque a minha tia não só ainda teve de recorrer a ele umas boas poucas de vezes, como houve até a necessidade de o Pêssego testar o seu legado de terror a uma jovem próxima da família, que passou a tomar conta de mim sempre que os meus pais se ausentavam.
Como a minha reputação me precedia, a minha tia tratou de lhe dar a dica, e tamanho não era o medo que eu tinha ao Pêssego, que este nem tinha de estar presente para me pôr na linha. Não, a única coisa que a dita jovem tinha de fazer era ameaçar-me de que ia chamar o Pêssego, antes de se dirigir ela também à cozinha e ao exaustor. Falava então para dentro dele com aquela que só consigo descrever em tremida retrospectiva como um misto de voz de cana rachada e de bruxa, a que eu dava seguimento com um guincho do mais puro pavor antes de correr a refugiar-me no quarto, devidamente amansado até os meus pais voltarem.
Muitos anos mais tarde, fiz questão de pedir à minha tia que me desse o Pêssego. Não o queimei por vingança, nem o esfarrapei (o buraco através do qual me vêem o polegar na foto acima foi mesmo do desgaste na costura), mas quis guardá-lo como um memento do poder da imaginação e do quão sugestionáveis este nos pode tornar. Se era possível conceber, sentir e acreditar num horror inefável com boina de pastor, então talvez criar um universo de fantasia de raiz não fosse uma ideia tão despropositada quanto isso…