O Bom, o Belo e o Verdadeiro

Em Abril passado, participei no Festival Contacto no painel O Bom, o Belo e o Verdadeiro, em que eu e a Madalena Santos discutimos esse conceito (doravante designado por BBV) nos seguintes trâmites: são estes os valores que fazem da boa literatura de fantasia obras intemporais? Ou serão estes adjectivos interpretáveis à luz do movimento cultural dominante de cada era? Numa altura em que me aproximo a passos largos do momento de decidir a que me vou dedicar quando concluir as Crónicas, achei apropriado partilhar o meu discurso de abertura no painel; não porque ele contenha necessariamente pistas acerca do rumo que vou seguir, mas porque é algo em que, com a idade, cada vez penso mais.


O que é o BBV? Falamos de algo que, ao falar dele, tornamos ao mundo do abstracto. Somente quando lemos e experienciamos uma história que se paute pelo BBV é que a apreendemos de forma concreta. Ou seja, não vale muito a pena compreender ou desconstruir uma história para descobrirmos «o que significa». Os princípios que pudermos extrair são menos bons, belos e verdadeiros, porque os traduzimos através dos nossos conceitos e ideias limitados. É o chamado «tinhas de ter estado lá».

Na Antiguidade, as virtudes universais foram identificadas, mas foram-no num contexto politeísta, de deuses que representavam virtudes separadas, não unificadas. Não foi senão com a vinda do cristianismo, que trouxe virtudes unificadas na forma de Cristo, que estas se tornaram indivisíveis.

Dito isto, os grandes filósofos gregos, de certa forma, prepararam-nos para essa chegada. Chamaram a atenção para uma realidade que transcende o mundo em que vivemos (a alegoria da caverna), em que o mundo dos sentidos não passava de uma sombra de um mundo real onde residiam os mais elevados ideais. A realidade não era temporal e material, mas espiritual e eterna.

Não lograram o Bom, o Belo e o Verdadeiro, mas chegaram o mais longe possível através do intelecto e da razão. E o cristianismo trouxe a quem aceitava essa filosofia a revelação histórica do BBV e a síntese destes na forma de Cristo, que encarnou o BBV e fê-lo enquanto caminhava por entre a esqualidez de um mundo imperfeito e era sujeito ao pior que ele tem para oferecer.

Em resposta a estas alusões ao Cristianismo, muitos dir-me-ão com razão que não há nada de inerentemente sagrado na literatura. Que esta frequentemente retrata o mau, o feio e o falso. E muito bem o dizem. Mas, ainda que nem toda a literatura se paute ou se consiga pautar pelo BBV, a origem da maior parte das artes é em serviço ao sagrado, por isso não há bem como o contornar.

Ficando-me pela abstracção, como referi, o que é o BBV, então? É o derradeiro fito do Homem, aquilo que ele almeja e deseja: a perfeição. O BBV transcende o tempo, o espaço, a cultura, a doutrina e a ideologia. É uma propriedade objectiva. Ao isolarmos e separarmos o Bom do Belo e do Verdadeiro, a imagem que temos do mundo torna-se fracturada e desorientada. Uma confusão que nos pode levar a tomar o falso por belo, o feio por verdadeiro e o mau pelo bom. Que é precisamente o que a doutrina do pecado prevê.

Dito isto, e cingindo-me ao tópico, um romance de fantasia que em vez de entreter tenha a pretensão de edificar ou educar, acaba por não fazer nem uma coisa, nem outra. Um grande romance de fantasia não se limita a entreter, claro: faz-nos crescer. Só que a sua finalidade não é essa, mas sim contar uma história que interesse ao leitor. E isso, naturalmente, entretém. Como tal, se é verdade que o que se procura num romance de fantasia é entretenimento, também é verdade que o que torna um livro realmente interessante é o que nele se encontra para lá do entretenimento.

O problema não é se existe ou não o BBV na realidade. A realidade pode ser dura e negra, mas o grande romance de fantasia que a retrata com arabescos e atavios imaginários desafia-nos constantemente a desejar mais do que ela. E isso é o que em última instância um romance intemporal de fantasia faz: desperta em nós o desejo do BBV, o anseio pela perfeição, o grito pela eternidade.

Ainda que não concordemos com o BBV, ou que não consigamos aqui chegar a um consenso acerca do que o define, julgo que o amor pela literatura e pelo prazer que ela nos dá une a maior parte de nós. Por isso, deixo-vos as seguintes palavras de uma certa trilogia que nós cá conhecemos:

“É melhor amar primeiro aquilo que fomos destinados a amar: precisamos de começar por algum lado e ter algumas raízes […] No entanto, há coisas mais fundas e mais altas, e nenhum jardineiro podia cuidar o seu jardim em paz […] se não fosse por elas, quer saiba da sua existência ou não.”

Merry Brandybuck, O Senhor dos Anéis: O Regresso do Rei

Só é possível olhar para as coisas grandes se começarmos por amar as coisas pequenas que estão diante de nós. Porque é o amor pelas coisas pequenas que nos leva ao desejo das coisas grandes.