No verão do passado ano, escrevi aqui acerca da série de jogos Monkey Island, de como ela me marcou e do valor nostálgico que tem para mim. Fi-lo porque estava para vir o tão aguardado e simultaneamente inesperado sexto capítulo, pela mão do criador original que abandonou o barco após o segundo título da série, e hoje venho falar um pouco mais de macacadas e de como elas me fizeram pensar.
Como antes referi, fiquei um pouco de pé atrás com o anúncio desse novo capítulo, porque ele anunciava o regresso do criador original, que tinha claramente desejado dar um rumo completamente diferente à história, como o evidenciou o final polémico do segundo jogo. Sem querer entrar em demasiados detalhes, Monkey Island apresentava-se como uma clássica aventura de piratas com muito humor e anacronismos à mistura, e o criador original imaginou um fim que era um misto de Twin Peaks, Calvin & Hobbes e piadola a parodiar a Guerra das Estrelas, mas acabou por nunca contar a alegada terceira parte que imaginara. A nova equipa que entrou em cena para o terceiro jogo continuou na vertente da história de piratas cheia de humor e arranjou uma forma engenhosa de entrelaçar na narrativa o final bizarro do capítulo anterior.
E a coisa funcionou. O terceiro jogo é o favorito de muitos dos fãs da série (incluindo eu) e elevou-a a níveis de popularidade que ela nunca tinha tido. O seu estilo gráfico e de animação bem distinto, a banda sonora orquestral e o facto de as personagens terem voz certamente terá ajudado, mas esses são apenas os adornos da narrativa. Uma narrativa que foi para lá daquilo que o criador original tinha imaginado, como este nunca se coibiu de dizer, e que influenciou profundamente os outros jogos que se seguiram.
Décadas mais tarde, o criador original regressou com o anúncio triunfante de que iria encabeçar o sexto capítulo da saga. Tive as minhas reservas, pelos motivos acima listados, e embora o resultado final não fosse tão mau quanto temi, acabei pela primeira vez um jogo de Monkey Island com um amargo de boca. Embora tenha havido um esforço para incorporar os adorados elementos dos jogos que se seguiram ao segundo, o sexto termina como uma repetição do final desse, servindo como um fechar de capítulo da vida do criador e um desfecho concebido para agradar a gregos e troianos que achei francamente anti-climático.
Felizmente, um ano depois, fui surpreendido por um anúncio mais inesperado ainda. Sea of Thieves, um jogo de grande sucesso, comunicou que ia acrescentar uma aventura de Monkey Island em três capítulos ao seu já vasto conteúdo. Ao que parecia, os criadores de Sea of Thieves são fãs ferrenhos da série e queriam prestar-lhe homenagem, contando uma história com as suas personagens favoritas integrada no mundo que eles tinham criado.
E sabem qual é a parte mais engraçada? Embora se trate de uma história curta baseada num jogo de aventuras de «apontar e clicar» transposta para um jogo cooperativo de acção-aventura em primeira pessoa concebido para ser jogado em linha, com todas as limitações que isso acarreta e todos os ajustes de código e de mecânicas a que isso obriga… a coisa funcionou. Um conteúdo opcional de um jogo completamente diferente feito por gente sem qualquer ligação a Monkey Island deixou-me com um sorriso rasgado na cara, e o regresso triunfal de um jogo com o envolvimento catártico do seu criador original não o fez.
E isso deu-me que pensar. Não me é difícil imaginar que haja leitores de Allaryia que não estejam satisfeitos com o rumo que a saga seguiu, embora tenha sido esse o desejo do criador original (eu, neste caso). São situações diferentes, bem entendido: uma comparação mais fiel seria imaginarmos que eu tinha saído de cena após Os Filhos do Flagelo, outros autores tinham pegado no Marés Negras, n’A Essência da Lâmina e no Vagas de Fogo e feito de Allaryia um sucesso maior, e eu depois regressasse n’O Fado da Sombra para pegar na história onde a tinha deixado, fazendo referências aos três volumes que tinham sido lançados pelo meio e terminando com um final aberto no qual era ainda assim patente a forma como eu queria que a história tivesse acabado.
Sempre fui muito cioso das minhas criações, é certo, e as situações são realmente muito diferentes, por mais que não seja pelo facto de Allaryia e as suas histórias me pertencerem enquanto propriedade intelectual (Monkey Island sempre pertenceu à empresa que publicou os jogos). Mas, abstraindo-nos de questões legais, isso fez-me realmente pensar.
Acerca de ego e de orgulho, e do «risco» de alguém escrever uma história melhor que a nossa com as nossas criações.
Acerca dos mundos partilhados de Lovecraft, das antologias de Thieves’ World e da franquia Metro que nasceu do livro Metro 2033.
Acerca de como todas essas criações se tornaram tão mais ricas e abrangentes por terem contado com os contributos de tanto e tão diversificado talento que quis participar, não por dinheiro ou por édito editorial, mas por genuíno interesse ou paixão pelas criações de outrem.
A maior parte de nós voga numa consciência colectiva, e a ficção é uma embarcação que nos permite navegar, mergulhar mais fundo, ou viajar mais além nesse vasto oceano. Nem sempre nadamos para o mesmo lado, podemos orientar-nos através de instrumentos diferentes, e tende a haver discussão se devemos remar, velejar ou ligar o motor, mas uma coisa é certa: trata-se de algo que, de uma forma ou de outra, acabamos sempre por partilhar, seja a deixar outros subirem a bordo, a atrelarmos a nossa embarcação a outra, ou a formarmos uma frota com outros. Porque não partilhar o leme aqui e ali, também…?
Nunca fui abordado nesse sentido, não acho que haja interessados, nem tenho planos para o fazer para já, mas isto deixou realmente a minha mente mais aberta à possibilidade de partilhar os meus mundos, ou a imiscuir-me nos de outros no futuro. Não a título de ficção de fã ou de homenagens, mas de verdadeiras colaborações consensuais – algo em que inclusive pensei recentemente, quando adquiri uma certa colecção de livros numa feira de velharias… mas essa é uma história para outro dia, caso a ideia de facto se materialize.