Vernáculo familiar

Em conversa com a minha família, dei-me hoje conta de que, à semelhança de muitas outras, temos um glossário bastante nosso. A par das referências partilhadas com o meu grupo de amigos (como os famosos biçuç), já dava para criar todo um léxico de expressões, e listo aqui as mais apropriadas para partilha:

Aldrabão, simulador e vigarista: Mentiroso
O meu pai sempre levou muito a mal quando os seus filhos se «esticavam» um pouco com a verdade ou a esta se escusavam. A dada altura, qual sequência de luta-livre americana, começou a desencadear contra nós uma breve arenga em que, após confrontar-nos com a nossa peta, deixava o indicador bem espetado para com ele pontuar a cadência acusativa de «porque tu és um aldrabão, um simulador e um vigarista!» frequentemente rematada com um «eu ponho-te na rua!» que, felizmente, nunca se concretizou.
A minha relação e a dos meus irmãos com a verdade estreitou-se mais, desde então, e sempre que nos vimos confrontados com alguém a ser apanhado numa mentira, um jogador de futebol a simular uma falta, ou até alguém vítima de um lapso, também listamos a sequência. Por vezes com a ameaça de pormos a pessoa na rua.

Halitar: Bafejar algo ou alguém com o nosso hálito
Um hábito particularmente nojento que eu e os meus irmãos tínhamos para marcar território. Se havia um bolo, um gelado ou outro qualquer acepipe que quiséssemos só para nós, o primeiro a lá chegar «halitava-o», e os outros ficavam demasiado enojados para o comer. Também podia ser usado para atormentar irmãs mais novas em dias de calor no banco de trás do carro, aquecendo-as com o nosso bafo para as deixar desconfortáveis.

Ir a 160 em Alverca: Estar-se bem mais longe do que verdadeiramente se está quando se está atrasado
Esta nasceu numa sessão de Dungeons & Dragons, em que um jogador já sobejamente atrasado ligou a dizer que estava quase a chegar. Um outro jogador, que já o conhecia de outras lides, não se mostrou convencido e sentiu-se à vontade para o situar geograficamente e estimar a velocidade a que ele conduzia. Reza a lenda que ele nem estava completamente errado.

Levar azeitonas à tia: Motivo ridículo para se estar atrasado
Do mesmo jogador, da mesma campanha de D&D. Certo dia, foi efectivamente levar azeitonas a uma tia e chegou atrasado. E achou realmente que esse era um motivo perfeitamente legítimo.

Peixe de rio: Prato menos digno
O meu pai geriu um estabelecimento com restaurante, onde frequentemente se organizavam casamentos, e as discussões de orçamentos dele via telefone eram frequentes. Destaco uma em particular, em que uma senhora estava a tentar insistentemente puxar os valores para baixo, e o meu pai sai-se com algo como «bem, podemos servir só peixe de rio, nesse caso». Do outro lado, ouvimos um indignado «eu nã quero peixe de rio…!» e, desde então, peixe de rio tornou-se o nosso equivalente a «para quem é, bacalhau basta».

Pessoa: Homossexual
A minha mãe teve um cabeleireiro homossexual não assumido, que não enganava ninguém, mas era recatado e primava pela discrição. Sempre que falava com as clientes acerca dos acontecimentos da sua vida caseira partilhada, limitava-se a dizer «a pessoa com quem eu vivo». E, para uma família como a minha, isso foi quanto bastou para que «homossexual» fosse substituído por «pessoa» no nosso léxico íntimo. Até hoje.