Da organicidade da narrativa

Já por várias vezes referi que, apesar de ser extremamente metódico e disciplinado na escrita, faz também parte do meu método deixar certas coisas ao acaso. Mesmo antes de deixar de poder contar com o poder dos sonhos, já era um bocado treinador de futebol, na medida em que preparava o esquema táctico da equipa, mas fiava-me em momentos de inspiração ou de rasgo individual em que a história, de forma orgânica, resolvia os seus próprios problemas.

É um pouco arriscado fazê-lo, mas a verdade é que, até hoje, funcionou sempre. Fosse a escrever livros ou a concebê-los, a jogar sessões de Dungeons & Dragons, ou até mesmo a preparar discursos, entregar as rédeas à história (e, até certo ponto, à sorte) nunca me deixou ficar mal. Pode ter causado os seus momentos de ansiedade e incerteza aqui e ali, mas sempre que eu estava bloqueado ou tinha uma ideia que, à primeira vista, não era plausível, o segredo foi sempre deixá-la crescer por si só ou permitir que ela arranjasse forma de encaixar.

Porque me lembrei disto hoje? Porque, como já o disse, estou neste momento a escrever o último capítulo das Crónicas com base em pouco mais além das minhas ideias e uma ou outra cena que já idealizei há mais tempo. E uma dessas cenas faz parte de uma das desesperadas tentativas de sobrevivência dos refugiados de Dul-Goryn durante a sua fuga rumo à Sirulia, que se passa em terreno montanhoso e só tem como funcionar lá. Problema:

Pois… de acordo com o meu mapa original, publicado na primeira edição d’A Manopla de Karasthan, que costumo usar como referência por apego emocional isso seria complicado. A coluna de refugiados teria de fazer um senhor desvio para noroeste e depois guinar para leste para chegar à Sirulia. E, mesmo que isso fizesse sentido, não têm comida suficiente para os dias que isso lhes iria custar. Como resolver isto?

Usar o mapa desenhado pelo Samuel, pois claro, até porque passou a ser ele o «oficial». Lá estão as montanhas, que requerem apenas um percurso em arco e não obrigam a um desvio.

Obviamente que, se eu não falasse disto, os leitores nunca teriam sequer noção de que poderia ter sido um problema, até porque a referência de quem lê os livros é precisamente o mapa do Samuel. Digo-o só porque essa tal cena dos refugiados está na minha cabeça há bastante tempo, antes de eu ter sequer desenhado o mapa, mas não teria como funcionar hoje se a história (ou, vá, o mapa) não tivesse crescido organicamente ao longo dos anos.