Ao longo dos anos, tanto eu como aqueles que me conhecem nos questionámos por várias vezes o que leva alguém a ter a cabeça nos nuvens e os pés na terra. O que leva alguém a «acreditar» na fantasia, na medida em que passa boa parte do tempo a pensar nela e a tecer considerações acerca de um mundo fictício, como quem faz uma lista de compras de coisas que não tenciona comprar ou traça o projecto de uma casa que nunca irá verdadeiramente construir. O que leva alguém a fantasiar vidas noutros mundos, sem que isso o torne completamente disfuncional no nosso.
Não o soube, e ainda não o sei dizer. Talvez seja precisa alguma abertura para aquilo que o nosso mundo tem de numinoso, algo a que estamos muito mais abertos enquanto crianças, mas que gradualmente vamos perdendo à medida que crescemos, quando vemos as realidades do mundo esbarrarem com essa numinosidade. Talvez alguns indivíduos se recusem a aceitar isso contra as evidências, ou procurem mais fundo, escavando para além da realidade em busca daquilo que julgaram ver ou que prefeririam ver. E talvez isso os leve a expandir a sua percepção para além das limitações daquilo que nos rodeia.
Enfim, não sei, estou só a mexer uma salada de palavras. Lembro-me bem de um dia no regresso às aulas, na primária (já não sei bem em que ano), quando o professor de alemão nos pediu que recapitulássemos algo de interessante que nos tivesse acontecido durante as férias. Ora, a mim tinha-me recentemente caído um dente de leite, e eu, enlevado pelas descrições e ilustrações de um livro que tinha lido recentemente, pus-me a falar de como o Ratinho dos Dentinhos tinha vindo buscar o dente que eu tinha deixado debaixo da almofada e me tinha dado uma moeda em troca.
O arquejar incrédulo na sala de aulas foi colectivo. Nem sequer riram de mim, mas alguns levaram as mãos à cabeça, e um amigo meu, boquiaberto, virou-se da carteira e perguntou-me como é que eu ainda acreditava nisso, que eram os nossos pais que tiravam o dente e deixavam a moeda. O professor limitou-se a sorrir, disse «muito bem» e passou para o colega seguinte, e foi um momento curioso, na medida em que não foi traumático como talvez seria de esperar. As crianças sabem ser cruéis, mas, por um qualquer motivo, embora eu tenha firmado a reputação que já tinha, este incidente nunca mais foi referido, nem tornaram a gozar-me por causa dele. A única coisa que verdadeiramente ficou foi que o Filipe tinha uma mente fantasiosa. E acho que essa mente fantasiosa levou a que, na escola, eu fosse sempre o Filipe e não o «Faria», embora houvesse mais Filipes, na minha turma e não só.
Alguns dos meus amigos dizem no gozo que, embora já não guarde dentes debaixo da almofada, na verdade não mudei tanto quanto isso. E talvez seja verdade até certo ponto. Continuo sempre de olho aberto para o que o nosso mundo possa ter de ocultamente maravilhoso, para os segredos que ele possa reservar a quem esteja atento a eles e para os aspectos fantasiosos que a realidade tenta esconder. E depois transponho essas divagações para os mundos que crio, como quem procura o pote de ouro no fim do arco-íris, mas percebe que a verdadeira riqueza que encontra é tudo o mais que descobre pelo caminho e tenta tirar partido dela.
Mas, sinceramente, não percebo porque gozaram comigo. Ao menos não acreditava na Fada dos Dentes…