Há alguns tempos, quando fazia no Telegram os relatos da saga que foi conhecer, visitar, casar e tratar da burocracia interfronteiriça do casamento com a minha agora esposa, cheguei a fantasiar escrever um livro com base nessas aventuras. Isso dificilmente se tornará uma realidade, visto que uma das duas partes que seriam necessárias para o fazer não aprova a ideia, mas as memórias estão lá e acabam por vir à tona quando menos as espero.
A mais recente foi desencadeada pelo convite para o vindouro casamento daquele que foi padrinho do meu, um senhor ao qual chamaremos Damir – até porque é esse o nome dele – e que teve um papel fundamental na ligação Lisboa-Berlim, com pandemias e toda a sorte de dificuldades e contratempos pelo meio. Esta é a nossa história.
Estávamos no Outono de 2018. Eu e a minha esposa (doravante referida como Minha Futura Esposa, ou MFE) tínhamo-nos conhecido virtualmente em Junho desse ano e decidido encontrar-nos em Outubro num território neutro, em Itália. Esse plano quase saiu gorado, porque parti o tornozelo duas semanas antes da data do voo. Foi um acidente estúpido, em que andava de bicicleta e não parei a tempo de evitar que um carro que estava a andar bastante devagar me desse um toque com o pára-choques. Foi quanto bastou para me fracturar o tornozelo e, a duas semanas da viagem, tive de agendar uma cirurgia rápida e arranjar uma alternativa célere a muletas, pois não desejava passear por Itália com a MFE nessas condições. E o que eu encontrei mereceu-me a alcunha de «Robocop» durante uns meses.
Fora de brincadeiras, esta geringonça é fantástica. Só pelo facto de permitir usar as duas mãos enquanto nos dá um ar de amputado quando nos vêem de frente, já vale o preço. Deu-me a confiança de que o meu tornozelo rachado não iria ser um problema, e aguardei ansiosamente o dia do voo a partir de então.
Mas o nosso plano acabou por sair gorado por um problema de saúde sério da MFE na véspera, e tive de cancelar a viagem porque ela pura e simplesmente não estava em condições de viajar. Ficámos os dois extremamente frustrados, como é óbvio, mas não me deixei desmotivar e comprei bilhetes para ir eu visitá-la a Mostar no início de Novembro. A viagem a Itália ficaria para outra altura, e começámos então a planear o que iríamos fazer na Herzegovina, acerca da qual ainda sabia muito pouco na altura.
A viagem em si foi algo complexa do ponto de vista logístico, até porque levava bagagem de porão e umas muletas de precaução (além de que a geringonça cansa um bocado a perna após uso prolongado, sobretudo para quem ainda se está a habituar a ela), mas fui muito bem tratado nos três aeroportos da viagem Lisboa-Frankfurt-Zagrebe (em Frankfurt chamaram-me «Long John Silver», e em Zagrebe houve até malta dos serviços de suporte em solo a tirar selfies incrédulas comigo). Só não fui bem tratado no aeroporto de Mostar, porque nem cheguei a aterrar lá.
É verdade. Ao fim de um longo dia de viagem, e já perto das 22h00 locais, as condições atmosféricas no aeroporto de Mostar foram consideradas impróprias para aterrar (nevoeiro), e o avião teve de fazer um desvio para Dubrovnik, na Croácia, que fica a umas boas 2h30 de carro e bem mais de camioneta, que foi o transporte que a companhia aérea nos arranjou para nos levar ao destino ainda nessa noite. E foi aí, no aeroporto de Dubrovnik, que conheci o Damir, o meu futuro melhor amigo croata e padrinho de casamento.
Tudo começou quando ele se ofereceu para me ajudar com as malas e as muletas, ao ver-me atrapalhado quando enquanto dezenas de passageiros a bufar de irritação com o atraso se apressavam a colocar a sua bagagem na camioneta. Agradeci a ajuda, embora, desconfiado ao ver-me abordado por um calmeirão balcânico de casaco de cabedal com pinta de taxista – daqueles que cobram à má-fila o equivalente a meio mês de salário por um trajecto aeroporto-centro – fui discretamente a coxear atrás dele quando ele contornou a camioneta para ir pôr as malas no lado menos concorrido, só para me certificar de que ele não mas surripiava. Quando as vi em segurança, fui mais descansado para o meu lugar privilegiado na dianteira da camioneta, onde pude estender a perna à vontade e onde me preparei para uma viagem longa e secante.
Foi tudo menos isso, contudo. Percorremos um curto trajecto antes da primeira paragem, ainda na Croácia, onde toda a gente pôde ir fazer o seu xixizinho e comprar uns petiscos e bebidas, porque já passava das 23h e havia muita gente com fome. Devido aos nervos e ao stresse, não estava com grande apetite, pelo que saí apenas para esticar a(s) perna(s). Quando chega a altura de regressar à camioneta, eis senão quando me cruzo novamente com o Damir, que troca dois dedos de conversa comigo e, depois de eu lhe agradecer pela ajuda com as malas, olha para mim, olha para o saco de plástico que trouxe da bomba e faz-me uma proposta: e se eu o deixasse sentar-se comigo nos lugares mais privilegiados da camioneta, a troco de cerveja?
Não havia como recusar semelhante oferta, e assim fiquei com companhia para o resto da viagem. Confessei ao Damir que o tinha tomado por um taxista manhoso à coca de bagagens de estrangeiros incautos, e este disse-me que me tinha tomado por terrorista quando primeiro me vira, e que achara que a geringonça da minha perna era um qualquer apetrecho para esconder uma bomba. Fomos regando a conversa com cerveja ao longo da viagem, na qual forçámos o condutor a mais paragens que o necessário, uma das quais para urinarmos lado a lado, à chuva, comigo apoiado no ombro do Damir, num posto de gasolina abandonado na fronteira com a Bósnia. Merecemos inclusive o ódio e despeito de uma senhora, cujo pedido para parar fora recusado, e que terá dito algo como: «ah, pois, para mim não dá, mas para aqueles dois bêbedos já pára». Ninguém quer ser aquela pessoa que se recusa a parar para um aleijadinho ir fazer o seu xixi, afinal de contas.
Falámos de tudo um pouco ao longo da viagem, e fiquei a saber que o Damir ia visitar a namorada, que estava a estudar em Mostar na altura. Quando soube da minha história, ficou a olhar para mim em silêncio por uns momentos, olhou de seguida para cima como quem processava a informação e passou a enunciar cada um dos factos, acenando com a cabeça a cada um: «espera… então tu vais viajar para a Bósnia, visitar uma miúda que conheceste online, com a qual falaste apenas em chamadas, sem qualquer vídeo, e vais fazer tudo isso com meia perna?». Perante a minha anuência, olhou para mim uma vez mais em silêncio, pensou um pouco, e sacou então do telemóvel, dizendo-me que apontasse o número de telefone dele. E que, se eu precisasse de ajuda enquanto ele estivesse em Mostar, que ele tinha uma arma.
E assim começou uma bela amizade. Escusado será dizer que não, não precisei de armas em Mostar, mas, nos anos seguintes, o Damir ajudou-me muito e muitas vezes. Durante a pandemia, serviu-me de «mula» para entregar flores à MFE e foi um grande apoio durante os meses em que não foi possível vermo-nos, transportando-me até em segredo para eu surpreender a MFE numa visita inesperada. Durante o pico da loucura covidiana, ofereceu-se inclusive para me enviar o seu cartão de cidadão para eu me fazer passar por ele na fronteira entre a Croácia e a Bósnia (cidadãos croatas tinham outros privilégios para visitar o país na altura). Não o fiz, mas realmente ele está parecido comigo na foto do documento em questão, e a criatura até tentou incentivar-me a fazê-lo, dizendo que já que eu falava alemão, devia fingir que era filho de refugiados croatas na Alemanha, e que nunca aprendera croata. Tudo isto porque, nas palavras do próprio, «à conta disso, fico com um álibi brilhante se tu passares a fronteira com o meu CC». Porque nos Balcãs é assim.
Sem desfazer de amigos meus de longa data, acabei por quebrar a tradição e pedir ao Damir que fosse meu padrinho de casamento, porque, sem ele, eu e a MFE teríamos passado por dificuldades maiores ainda, e quem sabe se hoje estaríamos onde estamos. Agora, chegou a vez do Damir dar o nó, e irei com todo o gosto a Zagrebe no ano que vem para estar presente no evento. Por ser quem é, por ter sido o meu salvador, e por ser o responsável por esta pérola do vernáculo croata. Hvala ti, prijatelju, i sve najbolje.