A cidade que apenas se divide

Mostar é uma cidade fascinante. Não é o local mais turístico, sobretudo a parte ocidental, na qual me encontro. O que lhe dá fama é a velha ponte e a parte oriental da cidade, que faz lembrar uma pitoresca aldeia Playmobil otomana. É aí que se concentram as actividades e atracções, onde toda a gente vai tirar fotos e selfies, e onde bugigangas e lembranças incluem euros no preço, para turista ver.

Aldeia Playmöbıl

A parte ocidental é onde vive a maioria croata, e onde as cicatrizes da guerra não foram maquilhadas para visitantes. Quem a visita nunca diria que se trata de uma cidade bonita. Nela, está vivo, patente e corporificado o eterno debate acerca da seguinte questão: a Guerra da Bósnia foi uma guerra de agressão, ou uma guerra civil? Os bósnios defendem a primeira, e a parte oriental de Mostar ostenta todas as melhorias cosméticas de uma vítima agredida que foi ajudada e começou uma nova vida com uma nova cara. Os croatas mantêm que foi uma guerra civil, e a parte ocidental exibe de forma quase ostensiva as cicatrizes de alguém que foi lesado e não quer que isso seja esquecido.

Associação Croata de Prisioneiros da Guerra Civil na Bósnia e Herzegovina

Mostar é, também, uma cidade que pouco se expande e praticamente apenas se divide. Lojas novas surgem no lugar de lojas antigas, ou quando estas vendem ou alienam parte do seu espaço. Na parte croata, as pessoas casam relativamente jovens, tendem a ter filhos pouco depois do primeiro ano de casamento, e é frequente terem mais do que um filho. Mas isso não resulta na expansão da população, pois esta divide-se, na medida em que emigra. A diáspora croata equivale a toda uma outra Croácia pelo mundo fora, afinal (embora essas contas sejam enviesadas pelo facto de os mais de 500 000 croatas da Herzegovina entrarem na equação), e os herzegovinos não são excepção, abalando para fora do país em números nada recomendáveis para a sustentabilidade de uma nação.

Pontes em vez de muros? Deixem-me contar-vos uma história…

Mostar tanto é uma cidade que apenas se divide, que até mesmo as pontes dividem por cá. O elo entre as partes oriental e ocidental, que é o que dá nome à cidade («mostar» significa «guardião de ponte») foi destruído durante a guerra, e após a sua reconstrução, tornou-se uma via pedestre que liga duas partes de uma cidade que não querem ter nada que ver uma com a outra. É como a placenta de gémeos que sofrem de síndrome da transfusão feto-fetal e, como podem imaginar, é algo complicado de gerir. Não é algo que deflagre durante o dia-a-dia, mas tende a mostrar-se em dias do dérbi local e é uma subcorrente que está sempre presente na vivência dos habitantes, seja na atribuição de subsídios da União Europeia, nos dias religiosos que devem ou não ser feriado, na localização de edifícios de serviços municipais, e no eterno confronto entre sinos de igrejas e chamamentos de almuadens de mesquitas.

Em suma, é intrigante para quem visita, e uma dinâmica muito sui generis para quem cá vive. Seria de pensar que, numa época como o Natal, essas diferenças se sentiriam com mais força, mas a verdade é que a mentalidade é, no geral, mais uma de ficar cada macaco no seu galho. Muçulmanos vêm ao mercado de Natal para provar iguarias, da mesma forma que alguns cristãos não resistem aos acepipes de algumas festividades islâmicas noutras alturas do ano, e a coisa fica-se por aí. Estamos a falar de um país onde casamentos mistos (entenda-se cristãos e muçulmanos) são culturalmente mal vistos, onde as feridas de uma guerra étnica com pouco mais de trinta anos ainda não sararam completamente, e acerca do qual muitos se arrogam o direito de criticar as tensões inter-religiosas. Porém, a verdade é que aqui se instalou uma mentalidade de prudência pragmática, em que não se consegue conceber que possa haver a necessidade de erigir pilaretes e afins barreiras num mercado de Natal, como é o caso em alguns países pela Europa fora. Dá que pensar…