Uma só separação

Demorou, mas acabei por fim a leitura d’O Senhor dos Anéis em inglês. Levei bastante tempo porque li com calma e a saborear, mas sobretudo devido à minha saga balcânica de dois meses, uma vez que o livro é demasiado pesado e volumoso para se levar em viagens longas de avião com pelo menos um voo de ligação pelo caminho (e a bagagem já estava pesada ao miligrama).

Tal como seria expectável, não teria como me marcar como a primeira o fez… mas conseguiu ser melhor do que a experiência de o ter lido em adolescente. Foi a diferença entre ir a um evento de degustação gourmet enquanto criança que reencena a cena do puré de ervilhas d’O Exorcista quando lhe põem legumes no prato, ou de repetir a experiência anos mais tarde com o palato mais treinado. Achamos piada às cores e à disposição da comida, sentimo-nos levados pela experiência e talvez até tomemos o gosto a um ou outro prato, mas não sabemos verdadeiramente apreciar o sabor como mais tarde somos capazes de o fazer. E foi rigorosamente isso o que senti.

Depois, com outra idade e experiência, é natural que se pegue na receita original e se lhe dê um toque pessoal, um diferente tempo ou tipo de cozedura, uma especiaria adicional que entretanto ficou na berra, que se use um serviço de mesa com toda uma outra estética, ou até que se substitua uma medida antiquada por uma mais moderna. Mas a receita original estará sempre lá, e nada disso lhe tira o seu valor.

Goste-se ou não, Tolkien é incontornável na literatura em geral e na fantasia em particular. Ou se lhe presta homenagem na medida em que a «imitação» é a mais sincera forma de elogiar, ou se opta por uma inversão ou afastamento deliberados, ou se é inconscientemente influenciado, mas há sempre uma grande sombra projectada por um calhamaço sobre anéis debaixo da qual os escritores do género passam ou que conscientemente evitam. E eu assumida e descomplexadamente sou dos que se sentem narrativamente revigorados após a releitura da sua obra mestra.

P.S. Foi também animador ler a análise mais detalhada que esta edição contém acerca dos sucessivos ajustes e correcções que a obra foi sofrendo ao longo dos anos. Fez com que eu me sentisse um pouco menos arbitrário acerca da mudança de «carcaju» para «volverino», entre outras.