Por ocasião do primeiro centenário do nascimento de António José Branquinho da Fonseca, em cujo nome é organizado o Prémio Branquinho da Fonseca, a Gulbenkian convidou os quatro autores vencedores das duas edições do prémio – entre os quais eu – a escreverem um conto que tivesse como pano de fundo a novela “O Barão”. Inicialmente aterrado com o projecto, que não se propiciava de todo a espadas, magia e afins coisas sobre as quais já estava habituado a escrever, teria sido rude e extremamente ingrato da minha parte recusar, pelo que engoli em seco e fiz que sim com a cabeça. Após ler “O Barão”, mais aflito ainda fiquei, pois sentia-me como um professor de Inglês destacado para dar uma aula de substituição de Francês. Nada mais pude fazer além de deixar a imaginação correr, ver onde esta me levava, e rezar para que não acabasse por vender gato por lebre a quem me tinha requisitado a contribuição. O resultado foi “O Barão foi para o Boneco”, um conto que, por falta de uma definição melhor, lhe chamarei apenas isso. Não foi nem pouco mais ou menos tão doloroso ou custoso quanto eu esperara, e ao mesmo tempo foi estranhamente libertador. Em vez de um professor de Inglês, senti-me um músico de jazz com carta branca para improvisar, homenageando a obra de Branquinho da Fonseca através de pormenores e referências ao longo do texto.
O Barão era um homem alto, embora passasse a maior parte do tempo sentado sempre que o via, confortavelmente reclinado na sua cadeira dilecta com uma postura irrepreensível que certamente já lhe custava aos ossos e às articulações. Embora raramente saísse, vestia sempre um impecável fato e gravata que lembravam um certo quadro de Magritte e mantinha os sapatos sempre engraxados; por vezes chegava mesmo a usar chapéu dentro de casa, como se estivesse num café ou se quisesse unicamente manter fiel à pintura do belga. Possuía uma constituição enxuta, não sendo magro nem tendo nada de gordo, e ostentava ossos bem definidos na face. Tinha um grande nariz de narinas frementes, mãos venosas, manchadas e de dedos compridos, uma testa e calva maculadas, e penetrantes olhos cinzentos que de alguma forma ainda conseguiam ler à luz de candeia naquela sala escura. O seu cabelo era conservadoramente aparado e inteiramente branco, mas as sobrancelhas preservavam um tom escuro que dava um ar feroz e formidável ao seu olhar, esse pesado de preconceito e pleno de presunção. Era um homem de convicções firmes, o Barão, de saberes empíricos e teorias infundadas, e as suas opiniões solidificaram ao longo de vários obstinados anos sem adversários dignos para as contrapor, provavelmente devido à falta de paciência destes mesmos.
Não os culpava, pois sabia o quão irritante o Barão podia ser. Os meus primeiros meses com ele haviam sido difíceis, pois eu fora visto como pouco mais que um intruso no seu domínio, um plebeu indigno de respirar o nobre pó da sua carpete, um invasor “lá de fora” vindo para quebrar o frágil equilíbrio da sua torre de marfim. Era uma pessoa que gostava de pregar aos peixes, mas que não apreciava que os peixes lhe entrassem dentro de casa, pois era muito cioso do seu espaço pessoal e não só. De início limitava-se a ignorar-me, recusando-se terminantemente a ser levado em passeios e a trocar palavras comigo… aliás, o que ele fazia não era bem ignorar-me; era mais o facto de mal reconhecer a minha existência. Falava na minha presença, isso sim, mas era como se eu lá não estivesse. Não tendo os tempos modernos em grande conta, o Barão tinha por hábito lançar-se em diatribes contra aquilo que me parecia ser a condição humana dos presentes dias, ou o lugar do indivíduo no mundo.
Cada qual deve poder assumir a sua própria verdade e sensibilidade, dessa forma sustentando um individualismo subjectivo descomprometido com o social e o político – era o tipo de afirmações que fazia do nada. Eu tentaria responder ou refutar, mas cada palavra minha era ignorada em favor de um outro axioma qualquer que lhe ocorresse. E ocorriam-lhe com frequência, sendo substituídos pelo ocasional aforismo quando a vontade de falar começava a escassear.
Não me esforcei por aí além para estreitar a nossa relação – ele continuava a falar sozinho na minha presença e eu continuava a responder-lhe sem que a cortesia me fosse retribuída – e hoje, em retrospectiva, julgo que tenha sido isso mesmo o que levou ao nosso primeiro diálogo. Isto por um motivo muito simples.
O Barão falava para o boneco.